Gilbraz Aragão
O que é religiâo? Uma formatação, em mitos-ritos-interditos, que as culturas agrárias criaram para a espiritualidade humana, que, essa sim, seria uma constante antropológica? Se até o compartilhamento na internet pode ser oficialmente considerado uma religião, qual seria a invariante originária que permitiria detectar a especificidade do mundo religioso? O simples problema da definição de religião desdobra-se na questão dos métodos de estudo da religião - que tem a ver com o status epistemológico das ciências e, especialmente, das ciências humanas. A religião pode ser um "universal histórico" que se define pelo conjunto de fenômenos associados ao termo (escola europeia objetivista de Bianchi e Rudolph) ou uma "experiência de participação no sagrado" (escola subjetivista de Marburgo/Otto) ou uma manifestação cultural-intersubjetiva da significação do sagrado (escola de Chicago/Eliade), uma experiência teológico-axiológica totalizante (escola de Lancaster/Smart) ou uma ritualidade nomificante da cultura (escola teleológico-sociológica de Goninga: Baaren, Drijvers, Geertz, Spiro).
Em terras tupiniquins, o campo de conhecimento de Estudos da Religião está ainda amadurecendo como uma área acadêmica (vejam como referência os livros: TEIXEIRA, F. (Org.). As ciências da religião no Brasil. Paulinas, 2001; USARSKI, F. (Org.). O espectro discipinar da ciência da religião. Paulinas, 2007; CRUZ, E. e DE MORI, G. (Orgs.). Teologia e ciências da religião. Paulinas, 2011). Quando buscamos a fundamentação epistemológica e as propostas de instrumentação metodológica desse campo, percebemos que as Ciências da Religião no Brasil receberam influência da área cultural francesa (ELIADE, M. Tratado de história das religiões. Martins Fontes, 1977; DESROCHE, H. O homem e suas religiões. Paulinas, 1985), da área italiana (FILORAMO, G e PRANDI, C. As ciências das religiões. Paulus, 1999; CROATTO, J. As linguagens da experiência religiosa. Paulinas, 2001; TERRIN, A. Introdução ao estudo comparado das religiões. Paulinas, 2003) e também da cultura alemâ (GRESCHAT, H. O que é ciência da religião. Paulinas, 2005; HOCK, Klaus. Introdução à ciência da religião. Loyola, 2010). Em verdade, as primeiras elaborações em Ciências da Religião remontam à História Comparada de Max Müller, muito embora os livros mais antigos que a gente encontra nas bibliotecas da área por aqui cheirem mais aos queijos e Histórias francesas do que a linguiças e ao Romantismo alemão.
Menos expressiva e mais recente, todavia, é a influência que recebemos da América do Norte (PADEN, W. Interpretando o sagrado. Paulinas, 2001; NEVILLE, R. (Org.). A condição humana, um tema para religiões comparadas. Paulus, 2005; STARK, R. e BAINBRIDGE, W. Uma teoria da religião. Paulinas, 2009). Contudo, pelo que temos percebido nos intercâmbios dos últimos congressos da nossa área, é aí que se encontra o maior mercado de trabalho no mundo para professores universitários em Teologia e Ciências da Religião (a American Academy of Religion possui nove mil membros e a Society of Biblical Literature, oito mil), como também é aí que florescem experiências alvissareiras de relações entre teologias e estudos da religião (veja aqui no blog um roteiro da religião e do seu estudo nos EUA).
No Brasil, onde o positivismo cultural apenas a partir da década de 70 abriu espaço universitário pros estudos religiosos, ainda temos dificuldades (lembre aqui) para circunscrever a epistemologia e as diretrizes curriculares das Teologias e Ciências da Religião, seja na pós, seja nas graduações. Para um mapeamento das relações dificultosas das Teologias com as Ciências da Religião, veja-se aqui o livro que resgata as conferências dos primeiros congressos da Anptecre, como também um artigo de Ethiene Higuet e outro de Afonso Soares, além de entrevista mais recente de Luís Dreher. Ainda para esclarecer as dificuldades de relacionamento entre fenomenologia, Teologia e Ciências da Religião, indicamos um texto de Hermann Brandt e uma "Rever" com reflexões meta-teóricas sobre os estudos da religião.
Já nos Estados Unidos, muitos centros oferecem disciplinas compartilhadas na área e o diferencial entre o enfoque teológico e o de ciências da religião aparece na pesquisa ou tese do estudante, denotando uma ênfase hermenêutica mais a partir "de dentro" ou "de fora" do fenômeno religioso estudado, respectivamente. Tal situação foi provocada a partir da década de 1960, quando a Suprema Corte dos EUA proibiu o ensino de teologia em universidades que recebessem dinheiro federal, liberando porém explicitamente o estudo mais "objetivo" e "neutro" da religião. Resultado, a Teologia, enquanto interpretação que busca "desde dentro" as razões para uma tradição de fé, passou a ser uma das Ciências da Religião (ENGLER, S. A distinção relativa entre a teologia e as ciências da religião. In: OLIVEIRA, P. e DE MORI, G. (Orgs.). Religião e educação. Paulinas, 2011).
Nesse contexto em que o magistério acadêmico se viu mais livre dos magistérios eclesiásticos, em que as injunções políticas acabaram despertando relações teoricamente mais equilibradas entre as teologias e os estudos da religião, novos métodos de abordagem do fato religioso têm surgido. Desde contextualizações epistemológicas mais integrais para compreensão da espiritualidade humana (como a ensaiada por Ken Wilber e já noticiada aqui no blog), até sínteses metodológicas mais sofisticadas e transdisciplinares, "de fora" e "de baixo", para o estudo científico da religião e religiosidade. Acreditamos que (feita a promessa de não nos rendermos ao abominável "mcdonalds" - até para não atrairmos a ira de Ariano Suassuna, há, há!) será salutar para a nossa área de Ciências da Religião no país um maior contato de pesquisadores com a América do Norte (já tamos até ensaiando algo, veja aqui, e descubra aqui a possibilidade de bolsas de pesquisa nos EUA), como também, e sobretudo, apostamos em uma maior interação com a literatura ali desenvolvida.
Em vista disso, lembramos livros que Eduardo Cruz tem organizado ou viabilizado e que refletem já um diálogo com o pensamento do Norte (PETERS, T. e BENNETT, G. (Orgs.). Construindo pontes entre a ciência e a religião. Loyola/Unesp, 2003; CRUZ, E. A persistência dos deuses. Unesp, 2004; CRUZ, E. (Org.). Teologia e ciências naturais. Paulinas, 2011). Também sugerimos três livros recentes (em inglês ainda), que podem ser adquiridos inclusive como e-books na Amazon: em geral, trata-se de bibliografia que, à diferença do estilo de argumentação em espiral literária ao qual nos habituamos pela influência enciclopedista europeia, apresenta as ideias em tópicos quase técnicos, no estilo de "papers". O americano é mais objetivo, menos analítico, escreve como em uma pirâmide invertida, enquanto o europeu é mais narrativo e opinativo. Depois, quanto ao conteúdo, surpreende porque coloca os estudos da religião em diálogo, para além daquele já consolidado com as humanidades, também com as ciências da natureza, a cosmologia e a arqueologia, a psicologia cognitiva e a sociobiologia, a neurologia (neuroteologia!) e a biologia evolutiva, etc...
...
...
Grassie, William. The New Sciences of Religion: exploring Spirituality from the Outside In and Bottom Up. New York: Palgrave, 2010.
Análise crítica da nova investigação científica sobre fenômenos religiosos e espirituais. Grassie desenvolve uma abordagem fenomenológica que trabalha “de fora e de baixo”, de "fora para dentro" e de "baixo para cima", não privilegiando ideologias religiosas ou pressupostos filosóficos. Usando colaborações da economia, psicologia evolutiva, neurociências e medicina, ele articula uma compreensão complexa e multifacetada da religião, como potencialmente funcional em contextos específicos, variando entre indivíduos e grupos. As novas ciências da religião perguntam o que na espiritualidade também pode ser verdadeiro e profundo, sobre a natureza da realidade última e da existência humana, quando as suas tradições são reinterpretadas à luz das ciências contemporâneas. Veja mais aqui.
Grassie, William (Edited by). Advanced Methodologies in the Scientific Study of Religion and Spirituality. Philadelphia: Metanexus, 2010.
No século XX, os cientistas sociais previam que as religiões seriam gradualmente extintas com a difusão da ciência, educação e crescimento econômico. Em vez disso, temos assistido a um renascimento global de movimentos religiosos, uma fonte de esperança e preocupação no século XXI. Juntamente com esta tendência, na última década se viu um ressurgimento do interesse no estudo científico dos fenômenos espirituais e religiosos entre os pesquisadores em diversos campos. Psicologia, sociologia e antropologia ainda desempenham um papel central em tais estudos, mas estas disciplinas agora são completadas pela economia, epidemiologia, psicologia evolucionista, neurociência cognitiva e genética comportamental, entre outras. Os colaboradores deste volume (Robert Emmons, David Hufford, Niels Henrik Gregersen, Andrew Newberg, Stephen Post, Richard Sloan, Rodney Stark, David Sloan Wilson) propõem novos métodos para se prosseguir o estudo científico dos fenômenos religiosos, sobretudo buscando perceber uma função crítica e profunda da espiritualidade na promoção do bem-estar e da saúde humana. Veja mais aqui.
Hinnells, John (Edited by). The Routledge Companion to the Study of Religion. New York: Routledge, 2010. Second edition.
Um companheiro completo para os estudos da religião. Ele começa explicando por que o estudo da religião é relevante no mundo de hoje, aponta as abordagens metodológicas mais importantes na interpretação das religiões, incluindo psicologia, teologia, filosofia, antropologia, sociologia, fenomenologia e estudos comparados (cada capítulo faz um balanço teórico da abordagem, apresentando os seus principais autores e obras), antes de passar para explorar uma ampla variedade de problemas críticos, tais como gênero, ciência, hermenêuticas, fundamentalismo, ritual, secularização e novos movimentos religiosos. Escrita por renomados especialistas internacionais, esta nova edição inclui oito novos capítulos, tratando também de religiosidade e pós-estruturalismo, religião e economia, religião e ambiente, religião e cultura popular, espaço sagrado... E por aí vai. Veja mais aqui.
Veja mais no blog:
rapaz,
ResponderExcluireu nunca imaginei que, afora o jazz, os gringos tivessem algo de bom pra compartilhar com o mundo... tou surpresa e vou ver isso, sim.
valeu!
Amanda.
Mestre Gil, esse blog é uma mina, que descortina ricos horizontes, viu? Obrigada.
ResponderExcluirMariana Sarmento.
meu jovem, pense bem... "os demônios descem do Norte"!
ResponderExcluirvejaí: http://pt.scribd.com/doc/39733281/Delcio-Monteiro-de-Lima-Os-Demonios-Descem-do-Norte
pode ler pra poder entender o descalabro da proposição!
Oi Gilbraz
ResponderExcluirParabéns por seu texto e elucidante revisão bibliográfica.
No momento ando de olho especificamente nos caminhos que vai tomando a questão do ensino religioso nas escolas, um tema sem dúvida muito conexo com o que vc menciona.
Grande abraço e paz
M. Fabri.