19 de nov. de 2011

JESUS, SORRIA MAIS



“No meio de uma feira, uns poucos palhaços
Andavam a mostrar, em cima dum jumento
Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,
Aborto que lhes dava um grande rendimento.
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Os magos histriões, hipócritas, devassos,
Exploravam assim a flor do sentimento.
E o monstro arregalava os grandes olhos baços,
Uns olhos sem calor e sem entendimento.
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E toda aquela gente deu esmola aos tais ciganos:
Deram esmola até mendigos quase nus.
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E eu ao ver este quadro, apóstolos romanos,
Lembrei-me de vós, funâmbulos da cruz,
Que andais pelo universo há mil e tantos anos,
Exibindo, explorando, o corpo de Jesus”
(Abílio Manuel Guerra Junqueiro).
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Das imagens ou símbolos ninguém se livra no jogo do conhecimento: a questão é como interpretamos as coisas. Dizer que “Jesus Cristo é o Senhor”, então, pode relativizar e questionar os senhores deste mundo (o pai, o padre ou pastor, o político, o professor, o patrão, etc), como pode também sacralizá-los como enviados ou legados de Deus. O símbolo, escrito ou esculpido, liberta ou submete a gente. Posso olhar pra Jesus, por exemplo, e encontrar força para enfrentar as cruzes injustas, como a sua, ou então achar consolo ("Mais sofreu Jesus") pra carregar como ele uma cruz tida como destino divino - porque eu ou a humanidade ofendemos a deus e precisamos pagar com o nosso suor e sangue! Durante mil anos, Orígenes e Agostinho ajudaram os cristãos a pensar na cruz de Cristo como resgate pago ao maligno pelas nossas almas; no século XI Anselmo pensou mais em satisfação devida a Deus pelos nossos pecados e no século da Reforma se falava ainda em punição justa pelo pecado humano - não é à toa que o cristianismo foi associado à culpa e não ao perdão...
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Depois da ciência moderna e de Darwin, sabe-se que o ser humano é criado em um processo de evolução, não havendo, portanto, um pecado "original" histórico - senão como tendência "originante" e natural para o ensimesmamento. E assim a hermenêutica transforma a saudade do "paraíso" em esperança: não nos é natural sermos naturais, podemos nos educar para uma amorosidade sempre maior, na direção do "ajardinamento" de tudo e com todos. Com isso, fica sem sentido a interpretação de que Jesus foi um emissário divino que veio para resgatar as vítimas da "queda original", juntamente com a visão da cruz como o momento do sacrifício divino que pagou o resgate do pecado.

Os bons teólogos cristãos discutem isso agora, articulando a possibilidade salvífica como uma experiência mais-que-natural de descentramento - vivida exemplarmente por Jesus Cristo, que com gosto amoroso acolheu o Outro, até em seus braços abertos na cruz. Cruz que foi consequência indesejada do seu amor histórico e político pelos outros, pelos desprezados (basta ver a irônica tabuleta nela dependurada, relacionando a pena às suas supostas pretensões de poder).

Jesus nos ajuda a ter fé direito, justo na sua cruz (afinal, o sentido de uma vida se revela na sua morte, e o Homão da Galileia não morreu de hepatite numa cama ou atropelado por um camelo na rua!), mas não por causa de algum milagre, e sim apesar da ausência do divino ("Por que me abandonaste?!"). E não uma crença esotérica na temperatura dos céus ou no mobiliário dos infernos, porém uma aposta obediente no mistério da vida, que nos escapa, e tira o medo de morrer - e de amar existencialmente, e de perdoar até aos inimigos ("Eles não sabem o que fazem!").

Mas se a gente olha pras imagens de Jesus em crucifixos barrocos ou mesmo em cinema e teatro que atualmente apresentam um Cristo sanguinolento e contristado, há de saber que se trata de uma mística penitencial (vejam o "Senhor Morto" aplaudido na Semana Santa e as Vigílias da Páscoa esvaziadas!), de uma espiritualidade cristã que nos veio com a colonização do mundo ibérico do século XVI, acentuando a intervenção divina (Providência) em todos os momentos e cultivando um apreço pela humanidade empobrecida e humilhada - principalmente no presépio e na paixão - do santo maior, Cristo, que se liga à aceitação resignada do sofrimento humano e da morte. Aí não se espera seguimento ético histórica e existencialmente recontextualizado, mas pura imitação estética (lembram dos crucificados das Filipinas?!) do santo.

Atribui-se já a Cirilo de Jerusalém a afirmação de que "o mundo inteiro se encheu de pedaços do lenho da cruz", e de toda sorte essa mística que pedura entre nós remonta à Idade Média, quando "o poder da cruz de Cristo encheu o mundo", como disse Atanásio de Alexandria. Não é de hoje (o poema acima é do final do século XIX) que há protesto contra uma imagem do crucificado que parece não ter ressuscitado, e nem brincado e dançado em vida - como todo moleque judeu em festa de casamento. Mas nas igrejas e muito além de suas paredes, a pessoa e mensagem de Jesus renovam-se atualmente como uma "Beleza tão antiga e tão nova". Aliás, foi pensando no Cristo que Dostoievsky sentenciou "A beleza salvará o mundo"!

É preciso passar da dependência do milagre “sobrenatural” que traz benefício do “santo” imitado, para a crença na possibilidade de sermos igualmente “santos” e capazes de fazer das nossas vidas um milagre “mais-que-natural” para a vida dos outros – pelo amor, que é (de) Deus! Qual deve ser mesmo o lugar de Jesus na vida dos cristãos?! Um objeto sagrado de culto mágico, do qual nos tornamos dependentes, ou uma pessoa mesmo de quem fazemos memória e a quem procuramos seguir, tornando-nos livres até de "nós" mesmos?

"Somos fuliginosos, perplexos, desgarrados e tristes. Somos seres humanos, transmudados por Cristo, homem divino. Somos bichos da terra, tão pequenos, mas o fogo do amor de Deus mora em nós. Por isto, temos a possibilidade da louca alegria. Cristo bailarino. Cristo dançarino. O mais próximo Próximo. Ali, na esquina, está ele, e nos olha. Naquele bar, naquele beco, naquela masmorra, hospital ou cortiço. Onde a carne sofre, aí está o Cristo, crucificado. Onde a carne ama, aí está o Cristo, glorificado. Onde está o homem, aí está o Cristo, suprema possibilidade do humano. Aqui" (Hélio Pellegrino. A burrice do Demônio. Rocco, 1989).
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Nessa linha, de recuperação de uma imagem mais equilibrada de Jesus Cristo, além das belas crônicas de Pellegrino ("Cristo, à cabeceira da mesa, nos convoca para o ágape. O pão, o vinho, a alegre - e leve - embriaguez apolínea. Cristo Apolo, elegantíssimo na sua túnica, pregando pelos campos..."), é incontornável o romance de Gerd Theissen, A sombra do Galileu (Vozes, 1991 - ou aqui, em espanhol). Mas não são apenas biblistas e teólogos que se metem na empreitada hermenêutica: "Vamos tirar Jesus da Cruz" (à epígrafe) é uma canção de Ney Matogrosso e amigos, que já tem quase uma década de denúncia da "cultura da culpa" cristã, que manteria uma imagem de Jesus sofredor e inspirador de cristãos mórbidos, propondo como alternativa um Cristo em êxtase prazeiroso ("sofrendo" o necessário pra diminuir o sofrimento da pessoa ou causa amada), entre outros santos no céu...
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Talvez uma única ressalva devesse ser feita, quanto à ordem das coisas: para seguir mesmo o espírito do Movimento de Jesus, seria melhor começar ajudando a tirar os pobres e humihados das suas cruzes reais em nossa história e sociedade, vítimas concretas das nossas desatenções e faltas e do mistério do mal, enfim, e aí Jesus desceria junto, da sua crucifixão simbólica. Estética boa passa pela ética! Mas temos de aceitar que, muitas vezes, os cristãos consideram divinas as coisas que fazem sofrer, sem mais: não é à toa que a igreja medieval associou Apolo com o Diabo.
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Agora, Carlos Ruas Bom, que acabou nosso parceiro de humor aqui no blog, lançou no seu site uma campanha para artistas: "Jesus, sorria mais"... "Jesus está chateado por só encontrar imagens tristes suas por todo canto, vamos exercitar os nossos dons e imaginar e representar um Cristo alegre, com o bem que já existe, com o belo que vem vindo". Apareceram mais de 200 desenhos e ele está colocando uns 50 selecionados na página do seu Facebook (veja aqui), onde as propostas mais "curtidas" até as seis horas do próximo domingo (20/11) sairão vencedoras. É a arte "profana" salvando a imagem sagrada!
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Jesus brincando amarelinha/academia:
desenho de Vinicius Kran, no concurso de Carlos 
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“Num meio-dia de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se longe
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro”
(Fernando Pessoa/ Alberto Caeiro).
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 E pra você: quem foi, afinal, Jesus?!

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Gilbraz Aragão.

+ Para quem quer aprofundar o assunto da iconografia de Jesus, um bom livro é este: Pelikan, Jaroslav. A imagem de Jesus ao longo dos séculos. São Paulo: Cosac & Naif, 2000. Custa R$ 45 aqui no sebo ou R$ 72 aqui nas livrarias.
+ Há também sites que oferecem coleções de imagens de Cristo:
+ Assista documentários polêmicos sobre os símbolos do cristianismo:
Origines du christianisme,
O deus que não estava lá,
Zeitgeist, the movie.
+ Veja pesquisas e meditações sobre Jesus Cristo no blog:

3 comentários:

  1. Já salvei o link p utilizar no curso "Música e religião"...genial...!!!!
    Silverio Pessoa

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  2. "E o mundo, livre dos ídolos, se transforma em jardins dos prazeres: tudo é permitido, desde que o nome sagrado continue a ser invocado em silêncio e o ruído do riso continue a exorcizar demônios... E o trabalho, e o pão, e o vinho, e a dança, e as canções, e as carícias, e o vento, e os pássaros, e os lírios dos campos, e o cheiro dos romãs depois da chuva e da bam-amada antes do amor, e o descanso, o sábado, a utopia do Reino de Deus, e viu Deus que tudo era muito bom, o seu coração se alegrou vendo a alegria dos homens, a quem ele amou e criou, para a felicidade, a liberdade..." (Rubem Alves. Variações sobre a vida e a morte. Paulinas, 1985, p. 164). Pra mim, Jesus é a encarnação desse sonho e desejo de Deus!
    Ana Virgínia.

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  3. rapaz, Jesus foi um cara legal...
    isso já não basta pra merecer um altar?!

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