12 de out. de 2011

O CHUTE NA SANTA

Von Helder chuta imagem
Gilbraz Aragão.
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“Ele diz que tem como abrir o portão do céu,
Ele promete a salvação.
Ele chuta a imagem da santa, fica louco-pinel,
Mas não rasga dinheiro, não”
(Guerra Santa. Gilberto Gil).

O poema de Gil foi motivado pelo chute na santa, que o pastor pentecostal Von Hélder, da Igreja Universal do Reino de Deus, desferiu contra uma imagem católica de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, na véspera da sua festa, em 1995. Roberto Marinho, da Globo, mostrou então a cena a não mais poder, no Jornal Nacional, e aí estourou uma comoção pública, com mútuas invasões de igrejas e agressões de parte a parte, com católicos assumindo sub-repticiamente uma defesa ardorosa da sua fé, através de procissões e passeatas de desagravo, plantando imagens de Maria pelas praças, pregando estampas da santa nos vidros dos carros – e até em cadernos dos universitários. (Estranhamente, contudo, quem recebia essas homenagens era quase sempre Nossa Senhora de Fátima ou de Medjugorje, bem branquinhas, e não a pretinha que foi agredida...).

O entrevero perdurou, até depois que a CNBB interveio, arrefecendo os ânimos dos “cruzados” católicos, oferecendo cristianíssimo perdão ao estabanado pastor. Uma guerra religiosa mesmo, e entre cristãos. Mas às vezes, “na prática, a teoria é outra”, principalmente quando se trata de religião. O escarcéu, em verdade, foi provocado por um “espiritualista” (ou, mais apropriadamente, servidor do deus-mercado, “materialista”), o dono da Rede Globo, que com isso orquestrava campanha de difamação contra Edir Macedo e a Rede Record, da Igreja Universal, por lhe ameaçarem um pouquinho com a crescente concorrência. Católicos e protestantes brigavam depois nas ruas, enquanto a Rede do “plim-plim” saía-se com aquela pose de vestal, direito a auréola e tudo mais.

É claro que o Von Hélder, por seu turno, não pretendia livrar os pentecostais das “imagens” sagradas, mas apenas transferir a tradicional dependência mágica, dos santos, para um livro – que basta o sujeito carregar, mesmo sem saber ler, para ficar “sobrenaturalmente” protegido. O pentecostalismo é, deveras, mais para católico do que para protestante: é o velho catolicismo popular – que os padres iluministas abandonaram e uns pastores, versão “high-tech” dos antigos leigos beatos, acabaram assumindo –, trocando a água benta da igreja pela água ungida através da televisão, a promessa a um santo qualquer pelo voto ao santo maior: Jesus.

O Diabo, então, [“vade retro”] continuou com a mesma importância que os missionários lhe davam antigamente, catalisando o mal, a sombra do sagrado, o sagrado maldito, que é exorcizado/sacrificado para trazer alívio, paz, alegria. Mas alivia, não cura. Por isso o processo deve se repetir indefinidamente: porque a verdadeira vítima são os “possessos”, que manifestam em si mesmos a violência da sociedade, a qual rouba dos pobres do “Reino de Deus” o ter, o poder e o prazer – que lhes cabe como gente, como filhos de Deus. Exorcizar alguém em transe, psicologicamente desequilibrado, é até fácil. Agora, vá expulsar o “Diabolu” mesmo, que entrou no couro do sujeito e lacerou a sua alma, dividindo-o de si pela exploração econômica, pela dominação política, pelo abuso afetivo...

Os católicos, por sua vez, não tinham lá tanto motivo para reagir com tamanha veemência. Afinal de contas, já fizemos lá nossas “loucuras”, quebramos as imagens da pajelança indígena e dos orixás negros aqui mesmo, nestas terras, por muito tempo. A primeira vez que o pessoal chuta um símbolo, de quem deu tanto mau exemplo, a gente vai se afetar assim... Depois, esse afetamento todo, com o chute na santa, demonstra que alguma razão o pastor tinha, quando denunciou que damos importância demais ao significante, em detrimento do significado: muitos confundem de fato a imagem com a santa. Pior: oferecem-lhe sacrifícios mágicos em troca de um benefício milagroso, ao invés de tornarem-se santos como ela, capazes de fazerem das suas vidas um milagre, “mais-que-natural”, para a vida dos outros – pelo amor. Das imagens ou símbolos ninguém se livra no jogo do conhecimento: a questão é como as interpretamos. Dizer que “Jesus Cristo é o Senhor”, então, pode relativizar e questionar os senhores deste mundo (o pai, o padre ou pastor, o político, o professor, o patrão, etc), como pode também sacralizá-los como enviados ou legados de Deus.

E por fim, se é para se protestar porque as imagens sagradas estão sendo mutiladas, a gente já devia estar fazendo procissão e passeata há muito tempo: na esquina da minha Universidade encontro meninas – “imagem e semelhança de Deus”, segundo o Gênesis –, vendendo coco ou vendendo o corpo, em condições de “trabalho” semelhantemente desumanas, levando porra e porrada dos caras! Outro dia alguém, questionando os novos movimentos religiosos, perguntava-se “qual é, afinal, o sagrado que salva?”. E nesta altura eu me pergunto: qual é o sagrado que devemos salvar primeiro: o da “santa” ou o das meninas?!

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