O Supremo Tribunal Federal (STF) deve retomar em breve o julgamento da ação de inconstitucionalidade que questiona a prática da educação religiosa nas escolas públicas brasileiras. Há anos o Ensino Religioso vinha deixando de ser confessional e católico entre nós e passando a transmitir valores humanos de fundo religioso, em um exercício de argumentação cristã interconfessional ou mesmo amplamente inter-religiosa - sobretudo com a proposta de Parâmetros Curriculares amadurecida pelo Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso, no qual participamos educadores e religiosos de diversas tradições e orientações.
Acontece que o Estado do Rio de Janeiro, sob influxo de um governo de inspiração evangélica, criou um sistema de Ensino Religioso que visa a educação das crianças por representantes religiosos - na prática, de até oito dos maiores segmentos, que passam a ser financiados pelo Estado - e para as suas religiões, pelas famílias que assim optarem. O modelo foi copiado como desejável por lideranças católicas no Acordo Brasil-Vaticano e depois ratificado também pela Bancada Evangélica no Congresso, mas acabou questionado pela Procuradoria Geral da República no STF - haja vista que pode induzir a uma filiação religiosa, situação incompatível com a atuação da escola pública. Agora, pela ideologização de um debate que deveria ser mais filosófico e pedagógico, corre-se o risco até de eliminação completa do Ensino Religioso (a propósito, veja a nossa enquete sobre a laicidade à brasileira por aqui).
Existe praticamente um consenso entre acadêmicos e entidades da sociedade civil, de que a reflexão sobre a religiosidade humana que é desejável nas escolas deve assegurar os direitos garantidos pela laicidade do Estado, o que inclui a não obrigatoriedade de presença às aulas e que o conteúdo não seja o estudo de uma religião apenas. Afinal, o bom princípio científico - e escola é lugar de educação científica - ensina que não se conhece com apenas uma amostra: é preciso comparar criticamente e interpretar os fatos - também religiosos - nos seus contextos históricos. Assim, religião não se ensina propriamente, mas se pode e deve refletir sobre esse fenômeno na escola. Até porque os sentidos e sentimentos religiosos sempre influenciam as nossas relações humanas, sejam de produção, de parentesco e política, de palavra ou interpretação.
A religiosidade a gente "pega no ar que nem sarampo", não é um conhecimento racional - embora deva ser razoável! A iniciação de alguém numa tradição espiritual tem o seu espaço propício não na escola, mas nas liturgias da respectiva vivência simbólica. Acontece que, sobretudo diante da crescente violência juvenil e/ou da dificuldade de socializar um projeto de civilização, muitos imaginam que os símbolos religiosos facilitam a transmissão de valores e que a escola deva ensiná-los com autoridade, reforçando a identidade majoritária na comunidade. Precisamos aperfeiçoar ainda a percepção cultural da sadia convivência entre fé e razão, precisamos aprofundar o nosso ensaio democrático de coexistência das tradições filosófico-religiosas em nossas sociedades sempre mais pluralistas. Para colaborar, pois, nessa discussão que acabou chegando nas mais altas instâncias do judiciário, o Jornal das Dez do Canal Globo News apresentou esta semana uma série especial de matérias sobre os (des)caminhos do Ensino Religioso no Brasil.
Aproveite agora pra (re)ver os vídeos dessa série intitulada "A fé na educação" e forme um grupo de conversa para aprofundar a questão. Depois de situar o problema, as reportagens (que se basearam em recente pesquisa) confrontam o modelo de "história das religiões" paulista, de um lado de espectro, com o modelo carioca de "iniciação em uma religião", que fica do outro lado espectro e é seguido por mais três Estados - enquanto os outros 21 Estados brasileiros e o Distrito Federal equilibram-se teórica ou praticamente (veja aqui a legislação) em um estilo de aulas de religião muito mais como testemuno das crenças de quem ensina do que como olhar reflexivo sobre uma experiência variada e multifacetada de conhecimento simbólico. A série coloca então esses modelos entre alternativas internacionais de Ensino Religioso, na Europa e nos EUA.
Vale lembrar que a França, pátria da laicidade, por exemplo, reativou o estudo histórico e hermenêutico das temáticas religiosas transversais, para ajudar na compreensão entre as novas gerações do seu povo cada vez mais multicultural e islamizado. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte proibiu o ensino de religião em universidades que recebem dinheiro federal, liberando porém o estudo mais "objetivo" e "neutro" das religiões; enquanto nas escolas estimula-se apenas o conhecimento histórico das religiões, para ajudar na compreensão e diálogo entre os estudantes - a despeito da pressão dos cristãos conservadores, que gostariam de ensinar criacionismo nas aulas de ciência...
E, afinal, a cultura religiosa deve ser mesmo ensinada nas escolas da República brasileira? De que maneira? Cabe à sociedade decidir, cabe aos pensadores discutir o problema:
veja aqui a primeira reportagem: saiba mais sobre o ensino religioso,
veja aqui a segunda reportagem: o modelo de história das religiões em São Paulo,
veja aqui a terceira reportagem: no Rio de Janeiro os estudantes escolhem entre oito religiões.
veja aqui a quarta reportagem: como a religião é tratada nas escolas europeias,
veja aqui a quinta reportagem: como as escolas americanas tematizam a religião.
Veja mais no blog:
Ensino religioso tem
lei,
Como pensar o ensino religioso.
Veja aqui uma leitura portuguesa do Relatório Debray
(sobre o ensino religioso na escola laica francesa).
Baixe daqui o livro O ensino religoso no Brasil
(organizado por Sérgio Junqueira, Curitiba: Champagnat, 2011, 2ª ed.).
Como pensar o ensino religioso.
Veja aqui uma leitura portuguesa do Relatório Debray
(sobre o ensino religioso na escola laica francesa).
Baixe daqui o livro O ensino religoso no Brasil
(organizado por Sérgio Junqueira, Curitiba: Champagnat, 2011, 2ª ed.).
Acredito que o correto não é ensinar religião, e sim, ensinar que existem religiões e em que cada uma delas acredita, concluindo que todas as crenças devem ser respeitadas.
ResponderExcluirA Rússia voltou a implantar o Ensino Religioso, com uma abordagem laica e histórica dos fundamentos das religiões e da ética ateia (mas os pais podem escolher também os fundamentos de uma religião específica)... Vejam em:
ResponderExcluirhttp://www.ihu.unisinos.br/noticias/512002-russia-volta-a-implantar-ensino-religioso-na-escola
Estamos dando pouca atenção a isso, mas há no Brasil uma crescente intolerância ao Estado laico e à existência de uma cultura religiosa plural.
ResponderExcluirCaso 1. Há lugares (Rio de Janeiro à frente) que mantém aulas de religião na escola pública, inclusive exigindo que o professor seja antes um devoto que autenticamente um estudioso do assunto.
Caso 2. Após o início da novela "Salve Jorge", a Rede Globo já teve de vir oficialmente explicar para grupos evangélicos que a novela não faz a apologia de nenhum santo católico ou afro-brasileiro.
Sinal dos tempos. Estamos vivendo no Brasil, em matéria de religião, uma situação que não deveríamos viver de modo algum. A ampliação de novos grupos religiosos e o recrudescimento de velhos grupos abre o nosso país para questões até pouco tempo estranhas. Duas delas: a questão da religião diante do Estado (caso 1) e a da religião diante da cultura (caso 2).
Quanto à primeira questão, notamos os grupos que não entendem que o Brasil é uma sociedade plurirreligiosa e que o Estado é laico. O Estado é neutro quanto à religião exatamente para garantir que indivíduos e grupos adotem e expressem as crenças que escolherem.
Por isso mesmo caberia ao Estado, talvez, incentivar na escola pública a história das religiões, mas não a aula de religião (ainda que plural) ministrada por um militante de igreja. Há vários editais, inclusive no Estado do Rio, em que se pede do professor que irá ministrar aulas de religião uma carta de uma "autoridade competente" em religião. Ou seja, o professor tem de vir indicado por um pastor, padre ou coisa do tipo. Isso é inadmissível.
Quanto à segunda questão, vemos os grupos religiosos se indispondo contra várias práticas das quais os seus fiéis não deveriam ser privados.
O Estado laico, garantindo neutralidade, e uma cultura plural criam manifestações artísticas de várias ordens e, assim, criam elementos que permitem que todos nós possamos usufruir dessas manifestações apenas como arte, não necessariamente como religião.
A Bíblia ou o Corão podem ser lidos sem que com isso o leitor seja um devoto ou queira se tornar devoto. Ter curiosidade por religião e ler seus documentos é antes de tudo saber usufruir da cultura.
Assim, de modo similar, se a TV viesse a apresentar uma telenovela religiosa -como já fez várias vezes-, isso não deveria ser motivo para que qualquer grupo de religião distinta emergisse pedindo de seus fieis o boicote ao canal em questão.
Ou seja, aquele líder religioso que pede boicote não está infringindo a lei, mas está desrespeitando, certamente, a inteligência de seus fiéis.
Voltando ao primeiro caso e articulando-o ao segundo. Permitir que uma escola pública tenha aula de religião ministrada por um devoto, e não por um historiador das religiões (ou alguém com formação equivalente), é exatamente retirar da escola a capacidade ser o elemento que iria, em uma situação normal, ensinar aos estudantes esta verdade: não há cabimento em alguém implicar com uma novela de TV por motivos religiosos.
Nossas autoridades legais e a maior parte dos intelectuais estão fazendo vista grossa sobre essas duas questões. Tudo está indo bem no Brasil, uma vez que estamos podendo consumir. Caminhamos para lugares escuros em leis e em cultura, e estamos quietos porque também temos podido ir aos shoppings.
Paulo Ghiraldelli Jr. 55, é filósofo, professor da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e autor de "As Lições de Paulo Freire" (Manole)
Folha de São Paulo, 2.1.2013, Opinião.