O branco rezou na cruz do cristão
O negro louvou os seus orixás
A luz de Deus é a chama da paz
E sob as bênçãos do céu
E o véu do luar
Navegaram imigrantes
De tão distante, pra semear
Traços de tradições, laços das religiões
Oh, deus pai! Iluminai o novo dia
Guiai ao divino destino
Seus peregrinos em harmonia
A fé enche a vida de esperança
Na infinita aliança
Traz confiança ao caminhar
E a gente romeira, valente e festeira
Segue a acreditar..."
Este ano, "Brasil de todos os deuses" será tema polêmico no desfile do carnaval carioca, por trazer símbolos das religiões - apesar do Tribunal de Justiça do Rio ter determinado agora que é "proibido proibir" imagens sagradas na festa. Lembram que já se proibiu a fala teologal da Beija-flor, quando tentou mostrar “O luxo do lixo”, clamando por uma nova estética e nova ética – a partir do avesso do tecido social –; e aí quis botar justamente o Cristo Redentor na avenida, ele que é tão visto dos Morros do Rio, para desfilar na festa do carnaval?! O coitado do santo teve que sair de “fantasia” – e Deus não se vê com os olhos da cara, mas com os da fantasia mesmo. Desfilou, ainda que coberto e amarrado, com um cartaz pendurado no peito que dizia: “Mesmo proibido, olhai por nós"!
Então, há quem queira separar o sagrado do profano, há quem fuja pra montanha e tente fazer um "carnaval da alma"... Mas, seja como for, o carnaval é um período de festas populares que se relaciona com a religião, uma maneira que o homem encontrou para unir o místico ao profano, lembrando, por exemplo, a proximidade da quaresma cristã e ao mesmo tempo evocando antigas festas romanas e ritos de fertilidade da Idade Média. Neste tempo de transformações e máscaras, de liberação de costumes e manifestação de desejos, não apenas os cristãos estão implicados.
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Uma manifestação do sagrado em Pernambuco que permite compreender mais propriamente as tradições culturais populares é o maracatu. Ele representa as caçadas e embaixadas dos reinos africanos, nasceu na soleira das calçadas de igrejas católicas, era o complemento “profano” dos trabalhos das “irmandades dos pretos”. Mas foi sendo hostilizado e finalmente daí enxotado, quando da romanização do clero brasileiro, do seu disciplinamento e doutrinação para fazer frente às vagas liberalizantes do protestantismo e da República. Resultado, os maracatus, eminentemente bantu, foram se abrigar nos terreiros de xangô iorubá dos morros do Recife, ou nos catimbós indígenas do interior, transformando-se em embaixadas deles no carnaval, em encontros dançantes com os ancestrais e demonstrações esfusiantes da alegria de viver.
Hoje, nas "Noites dos Tambores Silenciosos", festas religiosas prorrompem em meio ao carnaval de Olinda e Recife. Quando nos deparamos com tempo-espaços de vivência do autêntico sagrado somos levados a ultrapassar contradições aparentes. E podemos atingir, assim, uma visão mais complexa da realidade, na qual o vórtex sagrado-profano é encarado não como contradição dualista de dimensões opostas, mas como dualidade complementar e intercambiável. As Noites dos Tambores Silenciosos, certamente, manifestam um sagrado que está entre e para além de todos nós, um mistério que desperta reverência nos crentes e nos descrentes, que são atraídos por aquele momento de foliões carnavalescos que se vêem tomados por um culto aos mortos de uma religião, na porta da igreja de outra religião... O que parece contraditório se revela unido e reunido: cristãos e xangozeiros, mortos e vivos, festa e religião, sagrado e profano!
E mesmo antes do Reinado de Momo são feitas obrigações aos orixás para que protejam o maracatu durante o desfile. "Exu recebe bode, os eguns, mortos, recebem carneiro, galinha, ovelha. Tem cabra para a pomba-gira. Cada um traz um frango pra cortar pra um Exu", explicou outro dia Elda Viana, mãe-de-santo e rainha do Maracatu Porto Rico. Além dos sacrifícios, os rituais incluem a limpeza espiritual das calungas, que são bonecas que simbolizam rainhas mortas e estão associadas a algum orixá. Há também o banho dos membros do maracatu numa infusão de ervas, que tem sentido de purificação. E, no maracatu "de baque solto" da zona-da-mata, as rosas levadas à boca pelos caboclos são trazidas da poção de jurema do catimbó... Claro que esses folguedos, às vezes folclorizados e espetacularizados, não estão restritos aos negros, nem aos religiosos.
Mas as relações do carnaval com a religiosidade humana vão mais longe. Estudiosos têm buscado a origem do carnaval entre as mais antigas celebrações orgiásticas de caráter religioso da Antigüidade, dentre as quais as Saturninas Romanas, festival religioso que celebrava a entrada da primavera. Os romanos, sob a proteção da deusa Carna e do deus Jano, durante uma semana festejavam uma pausa no tempo, um período de suspensão quando toda a regra era abolida: as classes sociais deixavam de existir e a sexualidade era liberada. O carnaval atual, espalhado pelo mundo, contudo, tem muito a ver com o cristianismo - que a princípio adaptou a festa popular até nos conventos, mas depois foi tomando distância dela. A própria palavra carnaval vem do termo latino carnevale (a carne se vai), período anual de festas profanas que se iniciava no dia de reis (Epifania) e que se estendia até a quarta-feira de cinzas, dia em que começavam os jejuns quaresmais dos cristãos.
Cláudia Lima, nossa mestranda, em "Evoé: história do carnaval - das tradições mitológicas ao trio elétrico" (2 ed. Recife: Raízes Brasileiras, 2001) diz que há uma complexa tradição transformativa, pelo cristianismo, das antigas práticas ritualísticas. Não são poucos os mitos, as lendas e os rituais de um passado remoto que foram reconstituídos pelos cristãos. As festividades carnavalescas não são, desta forma, uma criação da Igreja Católica, mas um festim que, não podendo ser vencido nas suas tradições, foi incorporado ao calendário cristão. O estudo sobre o carnaval propicia a oportunidade para essa reflexão sobre o comportamento criativo dos cristãos, que, se debruçando no passado, fizeram uma leitura muito própria da história. Reelaborados os velhos temas festivos, eles foram apresentados como um mecanismo, remoçado, para a socialização de seus princípios.
Dentre tantos, é interessante a análise da "recriação" do mito de Adônis. A memória dos povos semitas deixava entrever o belo deus como o protetor das cidades, amado pelas mulheres. Ciclicamente, Adônis era corporificado e, depois de breve espaço vivencial, morria, para renascer em um tempo determinado. Às mulheres era dado um papel especial nesta dramatização: imaginarem a própria morte. Imagens cadavéricas eram feitas pelas mulheres que, num cortejo fúnebre, as lançavam ao mar para sentirem-se renascidas no dia seguinte. Essa tradição foi a base do mito do "rei que morre para renascer", que pode ser entrevisto no reinado momesco.
Não são poucos os autores que evocam a tradição de Adônis para mostrar como o cristianismo introjetou, na sua versão do carnaval, a idéia de um rei alternativo, escolhido para reinar por pouco tempo e depois ser morto. É a ressignificação do carnaval como drama condensado da vida e dos seus prazeres ilusórios, como sinônimo de morte. Não é à toa, portanto, que cristãos fogem do carnaval para fazer retiro ou organizam uma "festa cristã" à parte... A prefeita de uma cidade potiguar, ainda agora, proibiu o carnaval para que os seus munícipes acolham retiros religiosos! Alguns "missionários da folia" baianos tentam salvar foliões para Jesus! Muito embora todo aniversário de Dom Helder, no Recife, sempre tenha começado com uma apresentação do Bloco da Saudade e o Dom esteja imortalizado em boneco-gigante do nosso carnaval de Olinda, a festa do carnaval foi muito mais apresentada à cultura brasileira como uma preparação para o "afastamento" dos prazeres da "carne"... Será que ainda o é?! E o que essa história revela sobre o sagrado?!
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Gilbraz.
Veja aqui o belo Catálogo de Agremiações Carnavalescas do Recife e Região Metropolitana, onde está um artigo relacionado: "Do visível ao invisível"!
Veja também aqui uma meditação sobre o carnaval.
Veja também aqui uma meditação sobre o carnaval.
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