2 de mar. de 2011

CUIDADO COM A MAGIA NEGRA

"Círculo mágico"
pintura de John William Waterhouse,
Wikimedia
Está nos jornais de hoje (veja aqui, por exemplo) que a “polícia prendeu dois homens e uma mulher que esquartejaram professora em ritual de magia negra”. Pois bem, resumindo, a professora Maria Iracema de Morais foi assassinada em suposto ritual de magia negra. Os acusados são o pai de santo Paulo Vitor de Araújo, a mãe de santo Elizabete de Lima e o filho de santo Ailton Félix . De acordo com a polícia, Paulo Vitor teria injetado uma substância na professora durante um ritual no terreiro Axé Ilê de Maria Padilha, no bairro do Cordeiro, no Recife. Adormecida, Maria Iracema foi levada até Surubim, onde foi queimada três vezes e esquartejada. Seus restos mortais foram jogados em um açude. A faca utilizada no crime foi partida em três pedaços, que foram jogados no mesmo local. Pronto: é Magia! E da Negra! Que falta faz um cursinho de história das religiões e de cultura religiosa pra essa gente...

Pois quem estuda um pouco os fenômenos religiosos sabe que a interpretação dada ao fato está equivocada. Não é a primeira vez que a polícia e a imprensa, no Recife e alhures, atribuem assassinatos macabros a “rituais de Magia Negra”. Se os próprios assassinos explicam-se assim, estão abusando da religiosidade: Magia Negra (ou Culto ao Diabo, Satanismo) é uma tradição espiritual criada pelos gringos nos Estados Unidos, cujos ritos (que não incluem mortes) dificilmente estariam sendo praticados na periferia da nossa cidade. Se os policiais e jornalistas, por sua vez, associam nomes africanos e títulos de terreiros afro-brasileiros com a Magia Negra, eles são ignorantes e/ou colaboram para reforçar a secular criminalização do Xangô-Candomblé ou da nossa Umbanda e Jurema, como coisas ruins e perversas: saibam que a religião dos negros não mata gente! Os Nagô e Bantu na África, que legaram a matriz da religiosidade negro-brasileira, sacrificam animais para os espíritos da natureza. Na África não se matava mais gente para as divindades do que entre os seus avós de olhos azuis lá na Europa, ou os nossos antepassados astecas aqui na América - mas trouxemos os negros como escravos, para morrerem de trabalhar, e ainda acusamos os seus remanescentes de possuírem uma cultura assassina: piedade!

Dito isso, vamos desmistificar também a tal Magia Negra ou Satanismo (que não é a religião dos negros, pelo amor de Deus, mas de loiros!). Primeiro, esse Culto do Diabo não deve confundir-se com a Wicca ou qualquer outra forma de paganismo (em 2007 a imprensa do Recife misturou bruxaria e satanismo no estupro e assassinato de uma menina, veja aqui). Os pagãos ou neopagãos praticam uma religião que invoca forças da natureza e um casal de deuses antigos, em que não participa a figura de Satã, que é um anjo que se tornou o Diabo na bíblia judaico-cristã. Depois, em verdade o Satanismo começou como uma crítica “contra-cultural” à doutrina, simbolismo e prática do cristianismo, cuja civilização ele acusa de corrupta e hipócrita - e por isso recorre ao símbolo negativo dos cristãos como seu ícone de sabedoria (“a Chama Negra”), buscando inspiração na divindade Set (arquétipo da rebeldia provocadora, que a bíblia associa ao mal, como Satã). Trata-se, assim, do avesso simbólico do "american way of life". Há jovens rebeldes que utilizam elementos generalistas do Satanismo, através da imagética gótica ou da cultura musical do rock (como o simbolismo do crucifixo invertido), para manifestar a sua oposição à sociedade cristã ou mesmo justificar o seu comportamento antissocial (em 2008 um rapaz matou o colega por ciúmes e se aventou um pacto satânico, veja aqui).

Porém, o Satanismo contemporâneo tem mesmo a ver é com a Igreja de Satã, de Anton Szandor LaVey (falecido em 1997), que no dia 30 de abril de 1966, na Califórnia, declarou-se o “Papa negro” e anunciou a Era de Satã. Em suas “cavernas”, realizava casamentos satânicos para celebridades e batizados satânicos de crianças. LaVey escreveu a Bíblia Satânica (1969) e Os Rituais Satânicos (1972). Critica o cristianismo por renegar os apetites “animais” da humanidade e estimula o “darwinismo social”, a subjugação dos fracos. Uma apostasia dessa Igreja deu-se em 1975, por Michael Aquino, oficial do exército norte-americano que fundou o rival Templo de Set: insiste em que o intelecto interrogador dos humanos não resulta da simples evolução animal, mas é dádiva de Set à humanidade. O Templo de Set, numa via espiritual de estilo iniciático e gnóstico, procura exercitar esse dom, lançando ceticismo à sabedoria das religiões instituídas. Em seus “pilares” ou igrejas, atribui especial importância à magia ritual e cerimonial, pois, como explicado no livro de Aquino, Magia Negra em Teoria e Prática (1992), ela aumenta o poder subjetivo e potencia a nossa vontade sobre o universo. 

Reeditada mais de 30 vezes, a Bíblia Satânica de LaVey (pode ser lida aqui) é a referência teórica mais conhecida dessa tradição cultural e espiritual. Ela defende que Satã é uma força da natureza e pode ser invocado com rituais mágicos. É dividida em quatro partes: a primeira, Livro de Satã, afirma que os Dez Mandamentos de Moisés são mentirosos e cada um deve viver de acordo com sua própria lei; a segunda, Livro de Lúcifer, lista os príncipes do inferno e as entidades infernais, prescrevendo o hedonismo e as orgias sexuais como virtudes inspiradas por essas deidades; a terceira, Livro de Belial, apresenta rituais para invocação de forças satânicas em vista de atrair pessoas e matar inimigos; e a quarta, Livro de Leviatã, ensina dezenove palavras poderosas para os rituais, mencionando sacrifícios humanos.

Porém, a despeito do cenário de horror prescrito pras “Missas Negras”, como locais subterrâneos envoltos por animais sacrificados, decorados pelos símbolos do controverso Baphomet e do Pentagrama Invertido, os seguidores da Igreja de Satã evocam os sacrifícios de gente, comuns no antigo paganismo, mas o sublimam, segundo vários relatos, pelo "sacrifício" de "uma virgem nua que, no altar, recebe um leve corte para verter sangue". Isso em meio a um ritual parodiando o latim católico, com cânticos medievais franceses, mas sempre exaltando o individualismo “natural” e brincando com a estética hedonista.

Uma coisa é a gente não concordar com esse caminho de Magia Negra ou Culto ao Diabo, mas daí a "demonizar" seus seguidores e associar-lhes todos os crimes cometidos em recintos religiosos; daí, mais ainda, a vincular esses "crimes da Magia Negra" (sem lógica que justifique) aos terreiros afro-negro-brasileiros, é uma ruindade - ingênua ou maliciosa  - de "almas sebosas" não tão alvas quanto se imaginam. Então, professores, jornalistas, delegados (e assassinos também!), vamos ter um pouco mais de cuidado com a Magia Negra. Não cuidado no sentido do medo e da execração, mas do respeito e da consideração por uma tradição espiritual que compõe o patrimônio imaterial da humanidade.

Religião, como toda experiência de conhecimento humano, tem sempre um lado sombrio na sua tentativa de nomificar o cosmos e organizar a vida - e sacrifícios, inclusive humanos, faziam e fazem parte do seu repertório. Mas a Magia Negra é algo mais sério e mesmo sublime do que imagina a vã criminologia popular. E se "ritual de magia negra" é uma referência atravessada aos nossos xangôs, então saibam que não é só um rito não, tem também mito e interdito: é uma religião completa, com a mesma dignidade - e limites - que as outras. Portanto, por obséquio, parem de usar “Magia Negra” para nomear a maldade e a safadeza do comezinho ritual humano de sacrificar o próximo! Pois isso se faz, prática ou simbolicamente, com obsessão "religiosa" até, em altares de todas as cores, denominações e repartições. Ou não é?!

Gilbraz Aragão.

Para saber mais:
A violência e o sagrado, de René Girard, Editora Paz e Terra, 2008.
Coisas ocultas desde a fundação do mundo, de René Girard, Editora Paz e Terra, 2009.
Enciclopédia das Novas Religiões, de Christopher Partridge, Editora Verbo, 2006.
O altar supremo: uma história do sacrifício humano, de Patrick Tierney, Editora Bertrand Brasil, 1993.

Veja também no blog:
Ritual do exorcismo: sobre o filme que está nos cinemas!
História da África: coleção da Unesco para você ler!
Saiba mais:
Diabos...: palestra (em francês) com o historiador Jean Delumeau!
Dicionário escolar afro-brasileiro
Enciclopédia brasileira da diáspora africana

14 comentários:

  1. muito bem! só que além de pedir a professores e jornalistas e tal, peça também aos pastores pra deixarem as religiões dos outros em paz... quando um padre ou pastor faz coisa errada, ele fica sujo, mas quando uma ma~e de santo faz, é o santo dela, a religião dela, que fica mal falada, né não?! é injusto!

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  2. Sim!!! Mas quem esteve envolvido no brutal assassinato foram Um Pai de Santo, uma Mãe de Santo e um Filho de Santo. Todos, bem ou mal,ligados às práticas religiosas afro (seja lá qual for!).Assim, quem manchou a cultura dessas religiões foram seus próprios seguidores, e não a policia ou a imprensa.Não é dever da polícia ou da imprensa conhecer magia branca, negra ou de qualquer outra cor...O que há de concreto é a participação de membros dessas religiões. Desse modo, o endereço desse artigo deve ser, em primeiro lugar, aos seguidores dessas práticas.Do mesmo modo que padres e pastores envolvidos em escãndalos é que devem receber as críticas...

    É por isso que São Paulo diz: "A ninguém damos motivos de escândalo, para que o nosso ministério não seja criticado." (II Cor VI,3)

    Controla a raiva Gil!!
    Mas dessa vez você pisou na bola!!

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  3. Há, há! Será o "Benedito"?! (pra quem não sabe: a expressão coloca o nome de um santo negro(!) no lugar do "Satanás"!). Claro que os culpados, de todas as "cores", devem receber as críticas e as punições. A justiça vai julgar esses criminosos! Minha questão é que a hermenêutica desse tipo de crime está sendo também criminosa, uma vez que não há "Magia Negra" mesmo em nossa periferia (e se houvesse não estaria matando gente) e a expressão acaba sendo associada com os terreiros de Xangô do povo negro e/ou pobre dos morros. Agamenom Magalhães mandava a polícia fechar os terreiros e arrastar as mães-de-santo amarradas a camburões. Agora a perseguição é mais sutil: a polícia e a imprensa espalham que em seus terreiros realizam-se rituais assassinos (a liturgia deles prevê, quando mais, o sacrifício de um bode!). Os formadores de opinião têm dever de investigar e oferecer informações corretas, e no caso estão "denegrindo" (vejam que beleza de verbo a nossa cultura racista criou: tornar negro = desacreditar!) um patrimônio fragilizado do nosso povo, que é a religião "negra" dos orixás.

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  4. Parabéns, como sempre você através de seu vasto conhecimento colabora com a educação desse País.Tornando as pessoas menos ignorantes.Trata-se de um tema bem polêmico, sabemos que historicamente essa herança do preconceito e da imposição de cultura importada de outros lugares tem sido muito forte. É lamentável que ainda existam pessoas que aceitam tudo que é veiculado através da mídia.Concordo que o profissional que lida com a informação tem o dever de conhecer os conteúdos dos temas que veiculam.Me parece que alguns agem propositalmente como forma de sensacionalismo.Agora ele devem cuidado. Isso é muitoooo sério.Pois acredito que terá um tempo em que as religiões afro brasileiras estarão mais organizadas e tomarão as medidas pertinentes para preservar a idoneidade dos seus seguidores .

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  5. Gil... meu caro Gil, como sempre disse, queria ter 10% de sua massa encefálica... rsrsrs...
    Caro mestre... até quando será assim...? Sem dizer que toda prática religiosa de uma ou doutra forma, tem "magia". Mas, tudo bem, fica pra outro texto... (Torquato... pelo Blog da Liberdade)

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  6. Esse é meu ETERNO MESTRE...sábio ao falar de amor, seja ele qual for!
    Você é E-S-P-E-T-A-C-U-L-A-R!!!

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  7. Discurso de academia, politicamente correto, é uma coisa. Outra, bem diferente, é fazer um tour pelas encruzilhadas desta grande cidade, para ver os sacrifícios de animais que se fazem, conversar com os que trabalham em matadouros para saber quantas vezes foram contratados para fazer o sangramento e destrinchamento de bois e bodes e outros animais (cadê os boizinhos e boizinhas defensores dos animais?)

    Uma coisa é discurso de academia, outra bem diferente é perguntar o que as pessoas que procuram os terreiros para fazerem 'trabalhos' estão querendo.

    Vejam a frase de Gilbraz: 'Na África não se matava mais gente para as divindades do que entre os seus avós de olhos azuis lá na Europa, ou os nossos antepassados astecas aqui na América'!!!!

    Calma, Gilbraz! Daqui a pouco, estarás defendendo infibulação e infanticídio e outras atrocidades, dizendo que por aqui tem grupo de extermínio e coisas assim. O relativismo cultural não pode ser absoluto assim.

    Tão preconceituoso quanto generalizar a acusação contra pais de santo, é falar em 'evangélicos' invadem. Que tal identificar o grupo? Outra coisa, a única coisa que se vê no vídeo do pai de santo é ele vociferando, enquanto um grupo passa em frente ao que ele diz que é um terreiro, porque nem identificação tem. Pelo contrário, enquanto ele grita, fazendo o H, na 'passeata', alguns ficam acenando mandando os que (segundo o pai de santo) estão querendo invadir o terreiro (NÃO VI ninguém avançando contra ele no vídeo) sigam adiante, como que para sair logo dali.

    COMO REPORTAGEM, faltou por óbvio, O OUTRO LADO. A matéria não segue a orientação básica mais antiga do jornalismo: O QUE FOI, ONDE, QUEM, COMO, PORQUE, QUANDO. NÃO DIZ QUAL FOI O GRUPO EVANGÉLICO; NÃO IDENTIFICANDO, TAMBÉM NÃO DÁ VOZ AO OUTRO LADO (POR ENQUANTO É SÓ A VERSÃO DO PAI DE SANTO).

    Aliás, ainda, não são os evangélicos nem os católicos que tem secretaria no governo para promover suas igrejas. São esses grupos religiosos 'afro' que estão no governo, burlando a constituição e usando o estado para promover sua crença.

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    1. aí está a reportagem aludida, sobre a "invasão" do terreiro:
      http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cidades/noticia/2012/07/18/evangelicos-tentam-invadir-terreiro-em-olinda-49482.php

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  8. Manoel Mendonça18 julho, 2012

    Que beleza de interpretação caro mestre. Fez-me lembrar o filósofo Daniel Dennet quando diz: "Temos tendência a acreditar em coisas que nunca vimos e que nem sabemos e nem podemos provar se é verdade". Como saber que tudo que você escreveu é verdade? Teria que passar muito tempo lendo para chegar à mesma conclusão. Mas você o fez por mim, e aposto minha vida que tudo é assim mesmo como você descreveu. "Queria ter um filho como esse". Um abraço

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  9. A perseguição às bruxas continua na África... Isso não dá o que pensar?!
    "Em Gana e em outros países africanos, quando desastres atingem vilarejos, a busca por explicações acaba levando a bodes expiatórios – as chamadas bruxas.
    Mulheres excêntricas ou extrovertidas – muitas vezes idosas – costumam ser os alvos mais fáceis, e os casos normalmente terminam com a expulsão da "culpada".
    Atualmente, existem seis campos de bruxas espalhados por Gana, com até mil mulheres em cada um deles.
    Neles, mulheres exiladas de seus povoados podem viver sem medo de espancamentos, tortura ou até linchamento.
    Isto é, se forem consideradas inocentes ou passarem por um ritual de purificação"...
    Veja notícia completa em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/09/120902_campodebruxasebc.shtml

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  10. Saravá! Malê! Axé!

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  11. Meu querido mestre! saudade de suas aulas! Abraço fraterno, Bruno Severo

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  12. Ah Bruno: a satisfação de ser professor é ser ultrapassado por estudantes que nem você! Abraço grande!

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