Os discursos que se disseminam com mais facilidade em nossa cultura, ganhando maior visibilidade, apresentam pelo menos duas características: a oferta de novidades e a indicação do abismo. Na esfera da psicanálise, anuncia-se a morte do sujeito freudiano, a emergência de novas patologias, de novas subjetividades e de uma nova economia psíquica. Em seus diálogos com a filosofia política propaga-se, a falência do sujeito crítico, o crescimento da apatia depressiva, a perversão dos laços sociais.
A era pós-socialista, assim nomeada por Nancy Fraser para designar a nova configuração da ordem mundial globalizada e multicultural, representa um período de agudas mudanças sociais. A idéia de que vivemos um momento histórico de falências generalizadas, declínio do espaço público, dos ideais, da autoridade, dos valores e de tudo mais que havia até então, vem sendo apontada como um traço característico de nosso tempo.
A ausência de marcadores sócio culturais claramente postos como nortes para a ação do indivíduo em sociedade evidencia e promove uma desarticulação entre os governos de si e da pólis. Deriva daí, como querem alguns, uma catástrofe de dimensões incalculáveis: o impasse da governabilidade e a desordem social.
A adequação destes discursos à realidade revela-se frágil. O que esta vertente de pensamento percebe e descreve é, em minha opinião, apenas uma parte dos processos de mudança expressos em seus aspectos mais espetaculares e, por isto mesmo, mais visíveis. Este olhar incorre, portanto, no equívoco de tomar o todo pela parte mais evidente de uma realidade que, em geral, é sempre mais complexa do que parece. Reduzida por este prisma, pode tornar-se sombria e assustadora, convertendo-se em profecia pessimista projetada sobre os ombros das novas gerações.
As transformações sociais que testemunhamos através da História não implicam que os valores e a tradição tenham desaparecido. Ao contrário, servimos-nos deles para operarmos as mudanças necessárias ao enfrentamento dos desafios contemporâneos.
No momento em que se propala a emergência de uma nova economia psíquica, submetida à economia de mercado, torna-se necessário retomar o pensamento de Karl Polanyi. Sintomaticamente relegado a uma certa invisibilidade, Polanyi é considerado, por excelência, o grande pensador da crise à qual se expôs uma sociedade onde a lógica da economia de mercado ameaça dominar todas as esferas da atividade humana.
Se há uma psicologia econômica a ser extraída da obra de Polanyi, nela não se encontra o predomínio de uma tendência ao egoísmo como traço dominante. Ao contrário, o autor reconhece uma maneira de agir que subordina o trabalho e seus frutos às necessidades sociais da comunidade. Em sua opinião, as ficções difundidas pela “religião do mercado”, ajudaram a construir a ideologia de uma “psicologia econômica” orientada pela idéia de um gosto natural dos indivíduos pela acumulação e pelo lucro desmedido.
Do ponto de vista de uma ética da psicanálise e do Pensamento Complexo de Edgar Morin, insistiremos na coexistência agônica dos princípios antagônicos que regem a economia psíquica humana. Sempre passível de reinventar-se criativamente diante dos desafios postos pela tensão estabelecida na relação do indivíduo com seu meio, este psiquismo se debate em favor do propósito maior da vida, qual seja, perseverar na existência.
Para atingir seu objetivo, este seminário pretende fomentar o debate transdisciplinar e contribuir para a desestabilização de algumas crenças dominantes em nossa cultura; uma das mais nocivas, sem dúvida, a crença no mercado auto-regulado como forma autônoma de ordenação social, cobrou cotas de sofrimento nunca antes experimentadas pelos indivíduos, no âmbito privado e na vida societária. Nesta oportunidade, nos serviremos do pensamento desenvolvido pelo grupo M.A.U.S.S. ( Movimento Anti-Utilitarista em Ciências Sociais), favorecendo a difusão, no Brasil, do projeto contemporâneo por eles encabeçado.
Segundo representantes do M.A.U.S.S. , as crenças oriundas da ideologia do mercado devem ser repensadas, a partir de diferentes bases antropológicas, éticas e políticas, na intenção de lançar dúvidas sobre a naturalidade do homo economicus. Como resultado de uma construção histórica, o mercado não é o filho legítimo da natureza, mas o filho legítimo da política e constitui-se como excessão cultural no interior de outro ethos antropológico dominante, o da reciprocidade.
Os desdobramentos desta ideologia se fazem sentir na multiplicação dos discursos sobre as novidades, gerando efeitos de verdade e de realidade, rapidamente postos em evidência e assimilados, como alimento, pela boca insaciável e voraz do mercado consumidor. O fortalecimento deste pensamento, contribui para a invisibilidade dos movimentos contra-defensivos solidaristas que trabalham pela proteção do tecido social.
Partindo deste ponto, que chamaremos “paradigma da queda generalizada”, este curso pretende propor uma teoria complexa da ação humana. Sem eclipsar os antagonismos, buscaremos identificar e positivar, no tecido social, a força dos movimentos contra-defensivos da sociedade e suas relações com o propósito maior da vida, qual seja, reinventar-se criativamente para perseverar na existência.
É curioso perceber o funcionamento destes movimentos, acompanhado-os na produção artística contemporânea, sobretudo na literatura. A observação de produções cinematográficas e obras literárias, endereçadas a jovens e adultos, pode oferecer matéria prima de discussão sobre o modo como estes pensamentos se expressam sobre a crise anunciada.
É nossa intenção reafirmar o lugar da arte e da psicanálise como espaços de resistência, situando-as ao lado dos “movimentos contra-defensivos da sociedade” que, segundo Polanyi, respondem por uma luta subterrânea de grandes proporções, deixando transparecer o incansável esforço da cultura humana contra o esfacelamento das relações societárias.
Finalmente, mas não como ponto final ao anúncio de tantas mortes, a resposta do poeta Cabral: “ o poema final ninguém escreverá.”
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Programa do Curso:
I. Economia de Mercado e Economia Humana: diferentes modalidades de troca na vida social.
- Homo Economicus, Homo Donator e Homo Creator.
- Karl Polanyi e o Deus do Mercado: “A Grande Transformação”
II. Economia do Dom em Marcel Mauss: a tríplice obrigação, dar-receber e retribuir.
- Movimento Anti-Utilitarista em Ciências sociais ( M.A.U.S.S.)
III e IV. Discursos antropológicos sobre Natureza Humana e Laço Social:
- Mal Radical: um mito de intenção civilizatória?
- Paixões do medo: culturas da vergonha e da culpa.
- Paixões do Cuidado: simpatia, concernimento e solidariedade
V. Luta por Reconhecimento na Sociedade do Desprezo:
- Padrões intersubjetivos de reconhecimento recíproco nos processos de socialização: amor, direito e solidariedade.
VI. Vias de acesso à Eticidade Humana: do interdito ao reconhecimento.
- Contribuições psicanalíticas para uma teoria da Ação Humana
- Reconhecimento, visibilidade e estatuto de existência.
VII. Estatuto da novidade na economia de mercado e Estatuto da duração na economia da vida
- Novas patologias, novas subjetividades, nova economia psíquica
- Entre a Natureza e a Cultura, a Economia Psíquica.
VIII. Paradoxos da Invisibilidade na Cultura da Imagem
- O Pensamento da Metamorfoses em Edgar Morin: para além do conceito de Revolução.
- Movimentos Invisíveis: o valor da invisibilidade na cultura da exposição em Claudine Haroche.
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