11 de mai. de 2013

OTTO MADURO RUMO À ETERNIDADE

Otto Maduro, um filósofo e sociólogo da religião nascido na Venezuela em 1945, faleceu ontem (10 de maio). Vivia com a família nos EUA desde 1987, e desde 1992 era professor na Drew University (em Madison, New Jersey), além de conferencista mundo afora. Entre os seus livros, destacam-se Marxismo y Religión, 1978; Religion and Social Conflicts, 1982; The Future of Liberation Theology, 1989; Expanding the View, 1990; Judaism, Christianity and Liberation, 1991. Foi editor associado das revistas Cristianismo y Sociedad, Concilium, SIC, Liaisons Internationales, Maiêutica, Journal of Hispanic/Latino Theology, Journal of the American Academy of Religion, Social Compass, e o Journal of Contemporary Religion.

Como homenagem ao nosso velho e sempre atualizado professor, traduzimos abaixo uma reflexão de Otto originalmente publicada em Koinonia, "Para repensar conhecimento e libertação", que resenha justamente o seu último livro "Mapas para a festa: reflexões latino americanas sobre a crise do conhecimento" (publicado pela Vozes de Petrópolis em 1994; e atualizado em espanhol pela AETH, Atlanta, em 1999):

Muitas pessoas e comunidades sonham hoje com um futuro sem fome, sem desemprego, com meios de vida, saúde, férias... um futuro liberto da maior parte das dores, injustiças, divisões, medos, abandonos e egoísmos que infectam crescentemente nosso mundo. Porém, como chegar a um tal futuro? Como construí-lo juntos? Certamente não é coisa fácil. Permitam-me sugerir aqui que uma das várias razões pela qual não é fácil construir estes caminhos de liberação sonhados por tanta gente é pela maneira como usualmente conhecemos nossa realidade.

Com frequência pensamos que para melhorar a vida basta compormos um acordo sobre quais são os problemas mais urgentes e as soluções mais realistas e como vamos, então, dividir as tarefas... e mãos à obra! Desafortunadamente, essa maneira de pensar “funciona” (e isso somente às vezes) sobretudo se a realidade toda segue uma trajetória que nos resulta bastante aceitável e o que fazemos é “aproveitar” essa direção de nossa realidade para beneficiarmo-nos de alguns aspectos da mesma. Em outras palavras, essa maneira de pensar as mudanças “funciona” sobretudo se nadamos com a correnteza, não contra ela.

Mas quando a realidade se move em um sentido predominantemente destrutivo e excludente – como é o caso para as maiorias que sofrem hoje na própria carne as injustiças dos sistemas sociais predominantes – então as coisas são muitíssimo mal emaranhadas. Conhecer a realidade para transformá-la, quando tal realidade é orientada por valores, interesses e pressões contrários às mudanças que desejamos e buscamos, é tarefa sumamente difícil e complicada. É exatamente nadar contra a correnteza.

Há um aspecto importantíssimo deste nadar contra a correnteza: as maneiras como usualmente conhecemos e nos relacionamos com nossa realidade são maneiras moldadas, condicionadas, influenciadas pela mesmíssima realidade que dizemos querer mudar. Ou, digo de outra maneira: o modo como conhecemos as realidades que queremos mudar são modos de conhecer produzidos por esta mesma realidade, a imagem e semelhança desta mesma realidade, são modos de conhecer que servem, sobretudo, para confirmar e fortalecer (não para mudar) a realidade predominante. Mais grave: os modos como usualmente conhecemos as realidades que queremos mudar não servem para mudá-las. Sua serventia é para reafirmar e defender a realidade dominante. Pior: é impossível mudar o mundo sem persistirmos em conhecê-lo com as formas normais e “naturais” de conhecer.

Conclusão provisória: para poder mudar o mundo em que vivemos teremos que ir transformando, ao mesmíssimo tempo (não depois), nosso modo de ver a realidade, de conhecê-la, de nos relacionarmos com ela. E para alcançar isso, é preciso um esforço duro e contínuo de nadar contra a correnteza: de irmos nos ajudando mutuamente a descobrir como conhecemos e nos relacionamos com a realidade; como estas maneiras “normais” de conhecer e relacionarmo-nos com a realidade surgem da mesma realidade que queremos mudar e ajudam a reforçá-la... e o mais árduo: como ir então desenvolvendo novas (ou velhas e esquecidas) formas de conhecer que se comprometam a ir gerando desde já, pouco a pouco, desde a vida cotidiana de muita gente simples, essa vida decente que sonhamos para todos.

Há um velho adágio que diz “o caminho do inferno está cheio de boas intenções”. Sem queremos dar conta, e também sem querer darmos conta, podemos facilmente terminar fazendo danos aos demais com todas as boas intenções de fazer-lhes o bem.

Damos uma surra brutal a uma filha para que permaneça obediente e nos estranhamos de que o Governo mande a polícia torturar a quem o desobedece. Fazemos chistes de um vizinho homossexual e logo queremos que nos respeite quando pensamos de forma diferente aos poderosos ou à maioria. Falamos muito de igualdade e nos parece normal que sejam principalmente mulheres que cozinhem, sirvam, limpem e troquem fraldas. Criticamos as hierarquias antidemocráticas na política e aceitamos as de casa e as da Igreja. Protestamos contra a violência e a injustiça dos governos que não nos agradam e guardamos complacente silêncio ante aos abusos de um governante com o qual simpatizamos, um partido ao qual pertencemos, uma amiga sindicalista ou o primeiro que "le pega a su compañhera". Acaso não temos vivido contradições semelhantes? Sem querer, sem saber e sem querer saber, porém, de fato, “destruindo com os pés o que construímos com as mãos”.

Todos queremos ser parte de processos de libertação muito claros, lineares, sem ambiguidades nem conflitos, nem retrocessos, nem vítimas. Perdoem-me por propor uma perspectiva “aguada”: esses processos não existem. Não tem existido nunca. Não existirão jamais. Os processos de liberdade que existem, que tem existido e que existirão são processos humanos. E como tais, são complexos, ambíguos, cheios de contradições, conflitos e retrocessos. São dinâmicas frágeis e falíveis.

Ou para expressar de outro modo, os processos de liberdade não são somente processos libertadores. Também contêm e geram muitas dinâmicas que não são nada libertadoras. Dinâmicas abusivas, divisionistas, hierárquicas, de privilégio, etc. Dinâmicas machistas, autoritárias, antidemocráticas. E os processos de libertação raras vezes se mantêm como tais, como processos de libertação, mas aos de uma geração, se acaso: imperceptivelmente, pouco a pouco, um número crescente de líderes vá deixando de lado os fins originais e os vá usando cada vez mais como meras justificativas de seus próprios interesses, quem vem e denuncia tais processos é criticado, marginalizado, expulso (ou pior: perseguido, preso, exilado, torturado, desaparecido); e muitos meios originalmente repugnantes (como o uso das armas) deixam de ser meios para converterem-se em fins em si mesmos, em ídolos. Não é essa a história de muitas religiões, revoluções e organizações de caridade?

Suponhamos por um momento que, na verdade, desafortunadamente, qualquer processo de libertação seja ambíguo, complicado, cheio de conflitos, incoerências, retrocessos e vítimas. A maneira predominante de conhecer a realidade quase seguramente nos levará então à conclusão de que não há motivo para se empenhar em processos de libertação. Melhor seria aproveitarmos o sistema e buscar a salvação individual na vida depois da morte. Essa é a maneira de pensar que mais convém a um sistema social injusto e destrutivo como este no qual vivemos hoje. Uma maneira de conhecer que desconhece, que deixa o mundo como está é uma opção todavia mais cheia de vítimas, ambiguidades, conflitos, incoerências e retrocessos.

Porém há outros modos possíveis de conhecer a realidade e de nos relacionarmos com ela. Por exemplo, reconhecer humildemente, sinceramente, que é muito mais o que desconhecemos do que o que conhecemos. Reconhecer que todo o conhecimento da realidade é sempre incompleto, provisório, interesseiro, criativo e polêmico. Que todo conhecimento quiçá poderia e deveria – para ser genuinamente libertador, verdadeiramente atento a toda pessoa, comunidade, cultura, clamor e sonho – permanecer aberto a mudar, a ser questionado e criticado, a ser enriquecido e transformado, a perecer inclusive, para servir de fértil abono a nova vida, novas instituições, ideias, opiniões, sugestões, valores e dinâmicas humanas. Que nenhuma maneira de conhecer deveria tornar-se rígida, sectária, excludente, única, nem prepotente – se é que quer de verdade estar ao serviço de processos profundos, autocríticos, democráticos e não-violentos de libertação crescente da raça humana; não a favor de novas hierarquias, privilégios, opressões e exclusões.

Que tal uma espécie de “mudança na mudança”: desenvolver dinâmicas coletivas contínuas de revisão humilde e crítica fraterna das muitas maneiras opressivas em que conhecemos a realidade e nos relacionamos com ela? Quiçá seja interessante desenvolver uma atitude espiritual, tanto individual como comunitária, de buscar constantemente e corrigir diariamente as múltiplas maneiras como o sistema de opressão (capitalista, classista, machista, heterosexista, racista) se nos infiltra imperceptivelmente até nos pequenos gostos, nos grandes amores, nos mais íntimos temores, nas repugnâncias diárias e nas ambições secretas. Possivelmente dali surjam bons exemplos de maneiras realmente libertadoras, vivificadoras, humanizantes, de conhecer a realidade para mudá-la enquanto se vai mudando. Modos de conhecermos e de nos relacionarmos com a realidade que, em si mesma, encarnem e realizem aqui e agora – ao menos um pouco – o sonho de um mundo em que a cooperação, a solidariedade, a ajuda desinteressada mútua, o respeito à diversidade, à humanidade, à alegria e a ternura lhe ganhem a partida, pouco a pouco (desde a casa, o bairro, a escola, o emprego e a Igreja), ao abuso, a arrogância, a violência, a exploração e a indiferença.

Supostamente: é certo que algo ou todo o aqui sugerido está equivocado. Porém, não é acaso do constante debate que podem emergir melhores maneiras de conviver humanamente? Se estas provocações para repensar as relações entre conhecimento e libertação contribuem a esse debate, quiçá tenham então valido a pena. Se não, melhor jogá-las ao cesto de lixo!

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