2 de fev. de 2013

O CARNAVAL E A RE-INVENÇÃO DE UM POVO




Fevereiro é marcado pelo carnaval. Pouco menor que os demais, é mês esperado com ansiedade por conta da permanente luta pela afirmação da liberdade de ganhar espaços sobre a sisudez do trabalho, característica do mundo criado pela sociedade europeia em sua afirmação sobre as demais possibilidades de civilização. As instituições religiosas e a dinâmica imposta pela necessidade da acumulação da riqueza obrigaram gerações a esquecerem das brincadeiras espalhadas durante o ano. As sisudas roupas negras dos quackers, dos puritanos e jesuítas tocaram até mesmo o marrom franciscano, que recebeu a preocupação capuchinha pelo pecado. A sonoridade alegre da Palestina foi sendo substituída pela alegria fugidia do barroco.

Novas tecnologias trouxeram facilidades à vida diária e a morte foi ficando distante no Brasil mais moderno. Passamos a ter mais tempo para produzir riquezas e, se conseguíssemos chegar à velhice, poderíamos tudo isso desfrutar. Assim fizemos algumas mudanças em nossas vidas, nossas ruas ficaram mais amplas para os donos de automóveis e para os ônibus lotados de trabalhadores que se multiplicaram, graças ao avanço da ciência que auxiliou a aumentar a produção de alimentos e inventar meios e vacinas com o objetivo de tanger a morte. Ganha-se tempo. Economiza-se força muscular, anda-se menos, palácios tornaram-se casas, cortiços foram transferidos para favelas, os hospitais com seus batalhões de médicos, enfermeiras e psicólogos nos orientam a como nos manter vivos. Nas escolas, agora em maior número e diversificadas segundo a classe social, nos oferecem os instrumentos que ajudam a atravessar as ruas e entender um pouco do que acontece ao nosso redor. Mas ficou a nostalgia do carnaval.

Ao término do século XIX, no Brasil de cristianização católica superficial e modernização rala, o carnaval parece ter servido de caminho para que as camadas com menor acesso aos bens da modernidade ganhassem as ruas e reinventassem o Brasil, forçando que os participantes dos bailes que ocorriam em recinto fechado olhassem pela janela e observassem que os recentemente liberados do trabalho escravo, junto com os que, embora livres do trabalho forçado não tinham permissão para inventar – em uma sociedade escravocrata não pode haver liberdade de nenhum tipo, ocorrem variações do mesmo –, recriaram a diversão e refizeram o carnaval. Não como o de Veneza ou Amsterdam, Nova Orleans ou Quito. Foi sendo criado algo original, o carnaval brasileiro nascendo com o Brasil livre.

Nas cidade onde havia maior concentração de gente pobre tricentenária (mestiços) e gente pobre de duas ou uma geração na terra (gente liberada pela Lei do Ventre Livre e pela Lei João Alfredo), lugares como Rio de Janeiro, Recife, Salvador, São Luiz e outras metrópoles do período imperial, foram palco dessa criação. Inicialmente ocupando apenas os três dias permitidos pela seriedade do Concílio de Trento, foram, ao longo do século XX, ocupando outros tempos, abrindo novas veredas para as múltiplas possibilidades ofertadas pela nossa tradição. Hoje o carnaval compete e supera muitas indústrias criadas pela modernidade. O carnaval moderno é uma indústria produtora de riqueza argentária a partir da riqueza gozosa desse povo brasileiro sintetizador das dores e alegrias do parto da modernidade.

Viva o carnaval e sua luta contra a seriedade dos reformadores dos costumes, que agora são levados a debater e conviver com os costumes que foram criados nessa luta. O carnaval não pode ser visto como um índice de felicidade, mas pode ser entendido como uma vitória no embate com o mundo magro da seriedade e sisudez dos pastores, padres, gerentes de fábricas, cabos de usinas, etc.. Assim nos fazemos e fazemos o Brasil.

Biu Vicente,
historiador da UFPE, foi professor e é amigo da gente, autor dos livros Zumbi dos Palmares, A Igreja e a questão agrária no Nordeste, A Igreja e o controle social nos Sertões nordestinos, Festa de Caboclo, Entre o Tibre e o Capibaribe: os limites da igreja progressista na arquidiocese de Olinda e Recife.

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E atenção: pra quem gosta de se espantar e, ainda mais, deleitar-se, com essa mistura paradoxal de sagrado e profano nos carnavais do Grande Recife, onde se recria sempre de novo a história da nossa gente, a dica é que na próxima segunda, dia 4, o Sítio Histórico de Olinda será palco de um espetáculo misto de carnaval e espiritualidade. A tradicional Noite Para os Tambores Silenciosos acontece pelo nono ano na cidade e tem como objetivo o resgate da cultura religiosa dos maracatus. Os maracatus e afoxés se concentram às 20h na Rua Prudente de Moraes e seguem em direção à Praça do Bonsucesso, onde ocorre a cerimônia. E na outra segunda, dia 11 de fevereiro, será a vez da ainda mais antiga Noite dos Tambores Silenciosos do Recife. A tradicional cerimônia, que reúne as nações de maracatu de baque virado de Pernambuco, começa a partir das 17h com os Tambores Mirins, na frente da igreja do Pátio do Terço. À meia-noite, o silêncio domina o cenário, numa homenagem aos ancestrais africanos.
 Veja álbuns dos Tambores Silenciosos de Olinda em 20112012 e 2013.
Acesse por aqui a programação completa do carnaval e curta, no vídeo acima, o nosso mestrando em Ciências da Religião, Silvério Pessoa, cantando os ritmos e as cores do carnaval multicultural de Pernambuco.

Mais no blog:
Lavagem das escadarias
Brinque, meu povo
Carnaval e religião
Origens do carnaval
Sagrado nos tambores silenciosos.

Um comentário:

  1. It's a sweltering mid-summer night, and the pulsating crowd only adds to the heat. The shout, "Tu Maraca! Tu Maraca!" by musician Naná Vasconcelos reverberates throughout downtown Recife. More than 400 percussionists from over 30 different maracatu nations answer, beating out one thunderous rhythm, and thousands in the audience roar with approval. Once again, Carnaval has begun.

    Few foreign tourists experience the folkloric festival in the northeastern Brazilian city of Recife, different from the stereotypical version in Rio with its glitter and bikinis and exotic headdress. Recife's Carnaval is a treasure of cultural fusion and musical styles, combining Afro-European tradition with Brazilian modernity, both in the city and the country. Everyone casts off the trappings of normal life in preparation for the discipline and repentance of Lent, and scenes of breathtaking beauty and folklore -- dance, ritual, music and poetry -- unfold on every street...

    http://www.huffingtonpost.com/jason-gardner/the-other-carnaval-in-brazil_b_4508493.html

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