23 de out. de 2009

SOBRE PIRES E PALACIO’S

“Por que música em vez de ruído?” (Hubert Reeves)


Esta semana, na tarde do dia 20, o anfiteatro do Espaço Executivo acolheu mais uma sessão do Fórum Permanente da Identidade e Missão da UNICAP, sob a coordenação do Pe. Jaime Trudel, nosso Ouvidor Comunitário. A esse espaço de participação nos rumos da Católica acorreram muitos jesuítas, além de professores e funcionários da Universidade, que são ”colaboradores na missão” de educar cidadãos livres e conscientes, “para a maior glória de Deus”. O nosso Reitor, Pe. Pedro Rubens, iniciou os trabalhos apresentando outro jesuíta, o Pe. Carlos Palacio, novo Provincial do Brasil, que foi convidado para abordar a temática da “Importância de uma Universidade Jesuíta no Brasil, a partir de sua Identidade e Missão”. O Pe. Alfonso Carlos Palacio Larrauri é um espanhol-brasileiro, exímio teólogo, estimado e admirado por várias gerações dos companheiros de Santo Inácio. Escreveu inúmeros artigos e livros que são referência nas questões teológicas e na sua especialidade, a Cristologia. Lembramos, sobretudo, da sua memorável e premonitória conferência na SOTER de 96, “Novos paradigmas ou fim de uma era teológica?”, que rendeu acirrado debate e pode ser conferida aqui.
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O Pe. Palacio, é claro, falou bonito sobre o papel de uma Universidade jesuíta, disse que o seu critério de avaliação é quem os alunos se tornam como gente e que o corpo docente é o coração de tudo na Academia, disse que a boa formação dos alunos e o trabalho acadêmico relevante dos professores devem ser marcados pelo serviço à fé e pela promoção da justiça, como modo caracteristicamente jesuítico de proceder e de impactar a sociedade. As discussões que seguiram a conferência foram ricas e buscaram pistas para concretizarmos tais inspirações, mas uma fala encantou-me profundamente e ainda agora faz ressoar um sentimento de maior beleza quando percorro os corredores e jardins da UNICAP, em meio à gritaria dos seus pavões. O Irmão Pires, regente do Madrigal da Católica, perguntou ao Pe. Palacio sobre como usar, então, o poder, com esse diferencial jesuítico, na administração da Universidade... E meio que respondeu ele mesmo à questão, testemunhando o seu aprendizado de que “o papel do regente no coral Madrigal é muito modesto, é o de colocar em harmonia os cantos das pessoas, que são as responsáveis pela música”.
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Confesso que, desde então, estou tomado pela imagem da Universidade como uma sinfonia: cada gestor ou coordenador, cada professor, com uma batuta silenciosa (na foto, um clique que fiz do regente do Batutas de São José, no carnaval de Olinda) regendo a sua turma, o seu colegiado... Provocando a harmonia das pessoas em coro, produzindo uma dança de maracatu ali, uma teoria pedagógica aqui, uma pesquisa acadêmica que retumba, mais adiante. Já pensaram que, se a gente escutar direito, nosso campus é atravessado por sons ácidos de críticas sociológicas e, ao mesmo tempo, por cantigas de ave-marias que ecoam suaves da capela ou da difusora da Católica? Como harmonizar palanques estudantis comunistas com as rodas de capoeira dos meninos down?! Sem problema, se a gente conseguir vislumbrar tudo como uma sinfonia em processo, tiver o desejo de educar como arte, quiser acordar relações...

A essência de um acorde está nas relações. É a relação entre a duração e a frequência que compõe a melodia. As relações formam a própria música. Mais: as relações também formam até a matéria... Os físicos, hoje, argumentam que aquilo que conhecemos como objeto, mesmo a partícula mais elementar da realidade, é uma aproximação, uma metáfora do real. No nível subatômico, há uma troca contínua de matéria e energia - e são as relações com as outras partículas que fazem uma coisa tender a existir como tal, é a observação do sujeito que colapsa a coisa como isso e/ou aquilo. Somos todos partícipes, então, de uma teia inseparável de relações: o Universo todo é feito de harmonia de sons e relações... Cabe ao regente usar o poder da sua batuta para favorecer relações e harmonizar. Sem pretender eliminar quaisquer partículas/pessoas/tendências - com suas energias diferentes e contraditórias - mas buscando uni-las em outros níveis de realidade, onde se reencontram para cantar e fazer a dança da vida! É o espaço-tempo do misterioso "terceiro" que, incluído, pode permitir uma "Sinfonia dos Dois Mundos", como sonhava Dom Hélder, para além da exclusão e da violência.
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A música teve, com efeito, desde o início da história, um papel fundamental nos rituais humanos. Os ritmos evocam transes em que o eu é transcendido em nome de algo muito mais amplo. E a dança dá realidade espacial à música, tornando-a concreta, na ciranda da comunidade. Nestes dias temos discutido muito sobre ensino religioso confessional ou educação ética nas religiões, sobre as relações - ou não - entre religião e ciência, teologia e ciências da religião... Será que, tanto a teologia quanto a ciência, não deveriam recuperar a capacidade de fazer as pessoas “dançarem melhor a vida” e escutarem a “música das esferas celestes”? A música foi o primeiro veículo de transcendência do homem. Daí sua presença tão fundamental nas várias religiões. E ela foi, também, a primeira porta para a ciência. Afinal, a Academia começou quando Pitágoras descobriu uma relação matemática entre som e harmonia, mostrando que os sons que chamamos de harmônicos obedecem a uma relação matemática simples.

A música se tornou expressão da harmonia da natureza, e a matemática, a linguagem com que essa harmonia é expressa. Som, forma e número foram unificados no conceito de harmonia. E Pitágoras e seus sucessores não só estabeleceram a essência matemática da natureza como levaram essa essência além da Terra, unificando o homem com o restante do cosmo por meio da música como veículo de transcendência. Hoje, para além da redução binária da matemática, com as novas descobertas da física, a ciência desvela uma lógica da complexidade que envolve o Universo em diversos níveis e o abre para o mistério da realidade e da sua polissêmica compreensão. A religiosidade está voltando a ser buscada e respeitada, seu simbolismo tem uma verdade a comunicar sobre o sentido de todas as coisas, desde o começo. Mas a experiência religiosa tem algo a aprender com a relatividade da nova ciência, no que respeita à consideração de outras camadas de vivência, de outras possibilidades de acesso à transcendência.

“Deus é a harmonia dos contrários”, dizia Nicolau de Cusa. A Universidade Católica como uma sinfonia capaz de harmonizar o que se manifesta/e se esconde entre e para além das contradições... Desde aquela tarde do Fórum, ando imaginando analogias entre orquestra e escola; regente e professor ou coordenador; o arranjo musical e as concordâncias e dissonâncias no gerenciamento das pessoas. Ando crente que há similaridade entre o desempenho de um grupo vocal ou musical e a mecânica de uma estrutura organizacional, de uma Universidade que nem a nossa. Quando menos, essa viagem pela música me trouxe até umas ideias práticas: todos os professores que trabalham hoje, sexta à tarde, no bloco G da UNICAP, experimentamos a concorrência de uns barzinhos barulhentos na esquina, contra quem nem a polícia dá jeito. Então, inimigo maior do barulho dos barzinhos que a música clássica não existe. Sugiro voltarmos contra eles as difusoras da Universidade, tocando o primeiro movimento do concerto número um de Tchaikovski, a Abertura 1812, especialmente a parte onde entram em ação os sinos e as salvas de artilharia. Garanto que muitos fugirão apavorados para as nossas aulas - em especial as de Humanidade e Transcendência, há, há!

Minha educação musical é depauperada (tive aulas de teoria da música no ginásio de Taquaritinga, porém como o professor carecia da magia necessária, esqueci quase tudo), mas soube que música agora vai ser obrigatória no ensino básico (com certeza ela é tão necessária quanto a física, para entrarmos em novo paradigma científico) e tenho me reciclado, seguindo uma coleção de grandes compositores da música clássica. Aliás, outro dia comprei aí na banca da rua de lazer a segunda sinfonia de Gustav Mahler (1860-1911), chamada Sinfonia da Ressurreição (pode ser baixada também aqui). Eis como ele mesmo descreve o último movimento: “Chegou o dia do julgamento final. O terror cobre a terra. A terra estremece, as sepulturas se abrem, os mortos ressuscitam, poderosos e humildes, reis e mendigos, justos e injustos. Um grito terrível enche o universo com um pedido de perdão que enche o espaço. Ouvem-se as trombetas apocalípticas. É hora do ajuste de contas, débitos e créditos, céu e inferno, inferno tão bem pintado nas tela horrendas de Hieronimus Bosch. Então, em meio a um silêncio sinistro, ouve-se o canto de um rouxinol distante. Uma grande tranquilidade invade tudo. E eis, surpresa! Não há julgamento, não há débitos e créditos, não há justos e pecadores, não há poderosos e humildes, não há vinganças e recompensas, não há condenações! Um sentimento de amor perfuma o mundo”.

Para que, através da UNICAP, ecoe pela cidade uma "música" assim, da boa, e não "ruído", os nossos acordes devem todos colaborar, em uníssono (lembrando que um par de tons em uníssono pode ter diferentes timbres, vir de diferentes instrumentos ou vozes humanas, bastando que carreguem as mesmas frequências fundamentais). Acho, enfim, que o Fórum de terça despertou mesmo um novo espírito entre nós, de harmonia; fez pensar em sons diferentes para sonhos iguais; acabou tocando na ferida e coração da gente - e oferecendo um bálsamo simbólico para reeducação dos nossos ouvidos, bocas e mãos de gestores e, antes de tudo, professores, da Universidade: para que cada um possa ir encetando suas próprias variações e fugas melódicas, a idéia da batuta, de uma discreta marcação, qual canto de rouxinol, que eu já ando escutando nas sendas da Católica, entre os livros da biblioteca... Assim não será verdadeira, entre nós, a máxima de Rubem Alves: "Em terra de urubu diplomado, não se escuta o canto de outro pássaro".

Gilbraz Aragão.


2 comentários:

  1. Gorjeios e grunhidos
    Escrito por Ricardo Gondim

    Acabei de ver “A pele que habito” de Pedro Almodóvar com o estômago revirado. Identifiquei-me com o vilão da história. Eu me via como a encarnação da personagem fictícia. Quantas vezes tentei fazer os outros ficarem parecidos com um modelo de minha mente. Nesse anseio, alucinei. Eu já cheguei a considerar-me capaz de mudar quem eu quisesse – mal sabia que eu só queria fabricar objetos de prazer e de ódio.
    Transformei minhas alucinações em certezas. Fiz da vocação um instrumento de domínio. Pior, tentei tornar-me capataz de um Deus que moldaria o mundo ao meu padrão.
    Recordo uma fábula de Rubem Alves. “Certa feita, os urubus tomaram o poder na floresta e impuseram seu estilo de vida a todos os animais. Sua culinária, sua moda, sua estética e mesmo suas preferências musicais tornaram-se o padrão de referência para todos. Os pintassilgos, muito cordatos, esforçavam-se sobremaneira para corresponder às exigências dos urubus. Entretanto, os pobres pintassilgos não conseguiam se acostumar ao cardápio de carniça que deveria substituir sua dieta de frutas, tampouco conseguiam andar como os urubus, reproduzir-lhes os requebros e os grunhidos que os urubus chamavam de música. Observando os desajeitados pintassilgos, os urubus concluíram sumariamente: ´Não adianta. Um pintassilgo sempre será um urubu de segunda categoria’”.
    A beleza de qualquer floresta depende da diversidade. Os urubus são necessários, mas o mundo constrangido aos seus modos ficaria soturno, feio, grotesco. A beleza da vida está no respeito à identidade do outro. A grandeza de qualquer pessoa ou grupo reside em sua capacidade de coexistir com o diferente, sem a tentação de esmagar os que não dançam o dois-pralá-dois-pracá de desde sempre.
    Nas relações assimétricas, ou os fortes abrem mão do poder ou eles esmagam os fracos. O bom convívio passa pela Lei Áurea de todos os credos: “Trate o próximo como você gostaria de ser tratado”. Força bruta não muda nada – sequer muda alguém. Estupidez entrincheira opostos, acirra preconceitos, exarceba ódios.
    Tertuliano, um dos primeiros pensadores cristãos, dizia: “Deus, quando dá o poder… assim com o mesmo poder delega nele a imitação de sua paciência”. Ou seja, quem se enxerga comissionado por Deus a representá-lo, deve, obrigatoriamente, sentir-se impulsionado a manifestar a paciência divina e não a brutalidade. Será que Tertuliano ruminava a frase de Paulo: “Não sabes que é a bondade de Deus que leva o homem ao arrependimento”? (Romanos 2.4).
    Uma teocracia evangélica se degradaria, rapidamente, em um reino de urubus. O sonho de consolidar o cristianismo como um Sacro Império deve manter-se sepultado nos escombros dos tempos medievais.
    Baixem as armas, sacerdotes. Baixem o tom, profetas. Ateus e agnósticos, optem pela brandura. Dialoguemos. A humanidade cansou-se de guerras. Prefiramos ouvir a multicolorida sinfonia de Bach à cadência monótona dos hinos marciais. Temos tanta injustiça para enfrentar, tantos miseráveis para socorrer, tantos indefesos para cuidar. Não criemos mais uma guerra porque achamos nosso gorjeio, o mais afinado.

    Sebastião Tião - Mestrando em Ciências da Religião

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  2. escute ou baixe 150 compositores clássicos:
    https://musopen.org/music/

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