17 de out. de 2013

ECONOMIA COMO RELIGIÃO

“Não existem nações, não existem pessoas (...). Só existe um único sistema de sistemas. Existe tão somente um interligado, multinacional, domínio dos dólares, petrodólares (...). É um sistema internacional das moedas que determina a totalidade da vida neste planeta. Essa é a ordem natural das coisas hoje. (...) Não vivemos mais um mundo de nações e ideologias. O mundo é um colégio de empresas, inexoravelmente determinadas pelas imutáveis leis dos negócios. O mundo é um negócio (...). Uma vasta e ecumênica empresa holding, para a qual todos os homens trabalharão para servir a um lucro comum, (...) no qual todas as necessidades serão satisfeitas, todas as ansiedades tranqüilizadas. (...) Este (é) o evangelho” (Fragmento do filme Network, "Rede de Intrigas", de Sidney Lumet, EUA, 1976).

Há uma loja muito católica em um shopping do Recife que vende umas imagens de divindades orientais e uns gnomos esquisitos em meio aos nossos santos canonizados, todos eles "ecumenicamente" carimbados lá embaixo com um "Made in China" (dá pra imaginar a cara dos trabalhadores comunistas produzindo essas imagens?!). Dia desses, em restaurante metido a chique de Olinda, descobrimos um sorvete de cajá servido com biscoitos das monjas do Convento do Monte: eles são feitos nas formas das hóstias, que as irmãs também produzem pra vender às paróquias e sobreviver economicamente, mas a massa é mais gostosa, parece que leva mel. Uma das coisas que ouvi à mesa, meio iconoclasticamente, foi que "aquela comunhão era melhor que a da igreja"... Ainda nessa madrugada, na tv do avião que me trouxe pra São Paulo, assisti ao Mundo S/A, programa econômico da rede a cabo Globo News, com uma edição sobre "Hóstias e Santos" (você também pode assistir por aqui), mostrando a indústria dos produtos ligados à fé e como essa produção religiosa, os serviços religiosos e principalmente o turismo religioso constituem um fenômeno mercadológico.

Mas, ainda mais importante para considerar nessa relação, é a coloração religiosa da economia. Já é bem conhecida a interpretação do comunismo como substitutivo religioso que aposta na redenção do povo através do Estado, contudo o Mercado é uma variante ainda maior da mesma soteriologia (não foi à toa que Sarney americanalhou o nosso dinheiro, escrevendo "Deus seja louvado" nas patacas tupiniquins!). Neste instante, convidado por uma amiga no facebook, acabei de ver a transmissão ao vivo do lançamento, na capital paulista, de uma obra que talvez ajude a gente a pensar tanto na dimensão econômica das religiões, como sobretudo na aura religiosa que o utilitarismo liberal-capitalista ganhou. O sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, um dos maiores pesquisadores da obra de Walter Benjamin, está visitando a cidade para debater o livro recém-publicado "O capitalismo como religião" (Boitempo Editorial), por ele organizado e composto por ensaios inéditos de Benjamin.

Walter Benjamim, já na juventude, reuniu impulsos tanto do romantismo alemão quanto do messianismo judaico e do marxismo libertário, para revelar como o capitalismo se tornou uma religião cultual, que até favorece o pluralismo (e relativização) de culturas e religiões, mas para melhor transmitir a sua "ecumênica" fé única no Mercado divinizado, que sem piedade ou trégua exige sacrifícios e leva a humanidade para a “casa do desespero”, imobilizando alternativas pessoais e utopias políticas pra se viver para além do consumismo.

Creio que uma das principais tarefas dos estudos da religião é a crítica dessa ideologia religiosa, a denúncia da possessão social por essa idolatria pragmática propalada nas praças, nos tribunais e até nos altares - “em nome de Deus”. As torres e os sinos das catedrais perderam-se em nossas cidades pós-modernas, em meio à grandiosidade transcendental dos parques e mercados - mas a religiosidade permanece, travestida.

Ilustrativo lembrar que o prédio mais imponente da Conde da Boa Vista, avenida central do Recife, é um banco, cuja arquitetura não é nada funcional, pois remete à imponente acoplagem de uma nave sobre uma pirâmide - símbolo esotérico que evoca insconscientemente a união do céu com a terra e justifica o sacrifício de quem vai guardar dinheiro ali e, ainda mais, de quem vai trabalhar para multiplicá-lo (numa ética bem distante da vivenciada por aquele judeu cujo crucifixo, aliás, está ironicamente pregado dentro da agência, num recurso extra à iconografia da “ordem natural das coisas hoje”!).

Hoje, na mesma avenida, quase em frente ao banco e construído literalmente em cima da cúria arquidiocesana de Dom Helder, cresce e atravessa a rua um outro prédio, do shopping Boa Vista. Há alguns anos, envolto por uma nuvem de leds reluzentes e melodias natalinas, subi as suas escadas acompanhado por uma menininha que nunca havia entrado em um shopping - e à época estudava numa escolinha evangélica de bairro periférico. Extasiada, ela exclamou boquiaberta: "sabe quem fez isso aqui: foi Deus!". Desde então, quando organizamos as nossas visitas guiadas aos centros religiosos do Recife, as Peripatéias das Religiões, sempre sugiro incluir o shopping - entre os templos da religiosidade, de fato, que a gente cultiva. Ademais, toda religião tem muito duas coisas: esperança e dinheiro. Não é possível separá-las, mas somente escolher como combiná-las: ou se junta dinheiro vendendo ilusões ao povo, ou o povo reúne o seu dinheiro em mutirão para ir construindo a esperança...

Gilbraz.

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10 comentários:

  1. Jesus disse no sermão da montanha: "Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas. " (Mateus 6,24). E deste modo, coloca-nos diante de uma escolha entre servir a Deus ou às riquezas, ao dinheiro, ao capital; declarando a impossibilidade de se submeter simultaneamente a autoridade destes dois senhores, Deus e as riquezas. Porém será que muitas religiões encontraram solução para este problema ao servir ao dinheiro, acreditando que estão servindo a Deus?

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  2. professor, não é só que o capitalismo virou a religião... a religião também virou capitalismo! olhe aí:
    Depois da passagem do Papa Francisco pelo Brasil e do exemplo de simplicidade deixado por ele, a compra de um carro de luxo por um padre de Vila Velha, na Grande Vitória, tem gerado polêmica entre os fiéis locais. De acordo com o sacerdote, o veículo foi comprado em nome da Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e custou R$ 86 mil, sendo R$ 29 mil retirados das próprias economias. O padre negou qualquer motivação de ostentação na compra. O arcebispo de Vitória afirmou que os padres podem ter bens e não fazem votos de pobreza, mas são aconselhados a fazer doações. Para o Papa Francisco, os sacerdotes devem dar exemplo de simplicidade...
    http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2013/07/padre-compra-carro-de-luxo-no-es-e-diz-que-e-para-exercicio-da-funcao.html

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  3. Ah, mas tem muito mais: Na pequena Limburg, bispo ganha fama com viagens luxuosas e uma casa de mais de 30 milhões de euros. Fiéis estão indignados, e o caso vai parar no Vaticano...
    http://noticias.terra.com.br/mundo/europa/renuncia-do-papa/bispo-alemao-gasta-demais-irrita-fieis-e-tera-futuro-decidido-pelo-papa,a9603916418b1410VgnCLD2000000ec6eb0aRCRD.html

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  4. Por que não contam também as histórias das igrejas de vocês, heim? A imprensa está cheia:
    "Quem passa pelo número 353 da Avenida Doutor Délio Guaraná, em São João de Meriti, logo se impressiona: em meio a imóveis simples, na garagem da Assembleia de Deus dos Últimos Dias (ADUD), repousam dez carros antigos de luxo, alguns cobertos por lonas. Todos são registrados em nome de Marcos Pereira da Silva, fundador da igreja, preso na terça-feira pelo estupro de duas menores. A coleção vale mais de R$ 1 milhão, e é citada no inquérito em que a Delegacia de Combate às Drogas (DCOD) investiga o pastor por lavagem de dinheiro..."

    Leia mais: http://extra.globo.com/casos-de-policia/na-garagem-do-pastor-marcos-pereira-carros-avaliados-em-1-milhao-8361540.html#ixzz2iALkX5DQ

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  5. O serviço ao dinheiro nem sempre se dar de forma imoral, mas por nos tornarmos naturalmente dependentes dele para viver. É fato que o dinheiro que possuímos (ou não) garante o que comemos, onde moramos, as roupas que vestimos, paga o preço dos nossos livros e estudos e assim vai. E esta dependência econômica dita os rumos das coisas na vida de pessoas e instituições, sejam elas religiosas ou não. Nos comentários acima, percebi o descontentamento das pessoas com a quantidade de dinheiro que padres, bispos e pastores ganham, ou com relação a quais carros estão dirigindo. Ou seja, o problema não é somente se a origem deste dinheiro é honesto ou não, mas o que incomodo é o fato de serem religiosos os que estão sendo beneficiados por ele. Ou seja, o fato de religiosos estarem realizando o sonho de consumo compartilhado pela maioria das pessoas que frequentam as suas paróquias. Não incomoda o fato de sermos todos escravos de um sistema cuja lógica determina que as pessoas valem aquilo que possuem no bolso.

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  6. Peraí meus irmãos: isso aqui é espaço de estudantes das religiões e não de divulgadores de uma igreja - contra as outras, não é? Então vamos contextualizar e comparar os fatos e descobrir que é um fenômeno, esse da mercantilização da fé, que afeta mesmo o menor terreiro de santo, quando entra numa sociedade organizada pelo mercado. Mas acho que o que o professor quis provocar foi uma outra discussão: o próprio mercado ganhou auréola de anjo e está virando, na prática, a verdadeira religião da gente. Sustenta-se como uma crença e perpassa todas as crenças... É um fato novo na história das religiões, se for mesmo assim!
    Manu.

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  7. Acho que denunciar a simonia tá certo, mas dizer que a economia é a verdadeira religião da gente é criar confusão! A César o que é de César...

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  8. Após a rodada de conferências da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Bali, na Indonésia, o “embaixador” do Vaticano na ONU, o Arcebispo Silvano Tomas, emitiu as considerações da Santa Fé sobre o atual sistema econômico no mundo, onde vale destacar um parágrafo:

    “Enquanto uma minoria está vivendo um exponencial crescimento de riqueza, o abismo cresce entre a vasta maioria da prosperidade usufruída por esses poucos felizes. Esse desequilíbrio é o resultado de ideologias que defendem uma autonomia absoluta do mercado e de especulação financeira [...] Uma nova tirania então nasce, invisível e quase virtual, a qual impõe, unilateralmente e impiedosamente, suas próprias regras e leis”.

    Já não é de hoje que o Vaticano tem atacado o atual sistema econômico mundial. Em maio desse ano, o papa Francisco alertou em um discurso sobre os perigos de uma economia “sem rosto” que esquece as pessoas e agrava as desigualdades. Pode parecer absurdo, mas o papa tem sido extremamente criticado por suas observações contrárias ao capitalismo moderno. A principal acusação ao pontífice? Marxismo...

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  9. Leo Ganem, ex-CEO de duas empresas da Globo (seis anos na Som Livre e três na Geo Eventos), entrou no feirão gospel com um abacaxi para descascar.

    Em setembro, ele abriu a Um Entretenimento, agência focada no segmento musical cristão, “que tem parceria exclusiva com a Universal Music”. São 16 funcionários e duas sedes, no Rio (na enseada de Botafogo) e em São Paulo (Avenida Paulista).

    A Um multiplicou o ti-ti-ti entre evangélicos ao comprar duas coisas: os direitos da ExpoCristã, maior e mais longeva feira cristã de negócios no Brasil, e também uma boa briga dentro do segmento...

    http://religiosamente.blogfolha.uol.com.br/2013/12/20/da-globo-a-expocrista/

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  10. Mark C. Taylor es uno de los teóricos de la religión más prestigiosos de Estados Unidos. En su libro “Después de Dios. La religión y las redes de la ciencia, el arte, las finanzas y la política” (Siruela, 2011), el autor traza un recorrido teológico desde Platón a la actualidad, desde muy diferentes dimensiones de la experiencia humana. En él Taylor afirma que en el presente nos encontramos ante una realidad tecnológica, que además es económica, política, ontológica e, incluso, teológica. “En el cambio de mileno, el mercado se ha convertido en Dios”, escribe. Por otro lado, dado que la trayectoria del proceso evolutivo va hacia una mayor conectividad, cada vez resulta más urgente desarrollar una ética sin absolutos, que pueda sostener y enriquecer la infinita complejidad de la vida...

    http://www.tendencias21.net/El-mercado-se-ha-convertido-en-Dios-segun-Mark-C-Taylor_a12555.html

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