28 de dez. de 2012

JESUS, HISTÓRICO?!

No Recife, as boas bancas estão vendendo (em inglês), o livrinho da Life, "Jesus: an illustrated biography”, editado no último mês e assinado por Robert Sullivan. A publicação americana (saiba mais por aqui) mostra, com a colaboração de grandes estudiosos e teólogos e também pelas belas imagens de Denis Waugh, como Jesus "surgiu do nada para se tornar, em sua curta vida, de talvez apenas 32 ​​anos, um pensador, professor e pregador, cujas palavras e atos viriam mudar o mundo e tornar-se a base para a maior religião". A biografia, para além dos escritos do Novo Testamento e dos apócrifos, percorre os caminhos da carpinteiro de Nazaré, bem como as sendas que os seus seguidores hoje trilham em meio a um mundo tumultuado.

A Revista Superinteressante, que também está nas bancas da gente, traz como matéria de capa "Jesus: a verdade por trás do mito", onde argumenta que ele não nasceu em Belém, não tinha cabelo longo nem pele clara e era apenas um entre vários profetas. Diz que "Ele era moreno, baixinho e de cabelo curto. Não foi traído por Judas. Nem nasceu no Natal". O artigo pretende fazer uma síntese do que historiadores, cientistas e teólogos dizem sobre a biografia de Jesus (saiba mais aqui). Na mesma linha de divulgação "científica" para um público jovem, a Revista História Ilustrada à venda nas bancas (ou aqui) apresenta uma capa provocativa: "O verdadeiro Jesus: que a Bíblia não revelou - ou não quis revelar". O tom da maioria dessas publicações não é o da busca de uma ressiginificação das narrativas simbólicas da sabedoria pré-moderna (e da vida inspiradora dos seus "santos"), mas do estabelecimento de um confronto conflituoso entre a verdade histórica moderna e os antigos relatos religiosos. Antropólogos mais sisudos dizem que a barbárie segue-se a esse vácuo de valores e sentidos - que não podem ser construídos pela razão pura e simples.

A Revista Época, então, traz como matéria de sua última capa (veja aqui) o artigo de Marcelo Cavallari, “Jesus, um mistério que vai além da história”, que se baseia no recente livro And man created God (E o homem criou Deus), da documentarista britânica Selina O’Grady, para analisar "como uma pequena seita de cristãos se tornou a maior religião do mundo": o cristianismo se tornou a primeira religião universal por ter servido de base ideológica para um império, até então o mais amplo de todos. Desse amálgama de interesses, o cristianismo, por ter durado mais tempo, foi o maior beneficiário. Mas seu auge também já passou e, segundo O’Grady, estamos entrando hoje numa era pós-religiosa, na qual as pessoas buscam ainda os sentidos humanizantes dos mitos, mas não tanto praticar rituais. Diz o artigo que, de um cenário de derrota, “o cristianismo evoluiu para ser a maior religião do mundo em número de praticantes. É a principal religião da Europa, das Américas, da Oceania, tem fortíssima presença na África e existe em quase todos os países da Ásia. Para os adeptos do cristianismo, não é difícil explicar como isso se deu. Desde o início, Jesus foi visto pela Igreja nascente como a encarnação de Deus na Terra. Foi, pois, graças ao poder e à vontade de Deus que essa seita derrotada da obscura Palestina do século I tornou-se a maior força civilizatória que a humanidade conheceu”. Mas, para quem se baseia na historiografia moderna, essa história é mais complicada, defende a Revista.

É sempre assim: o final do ano enche as nossas bancas e livrarias com títulos sobre Jesus. Mas desta vez, há material para alimentar uma boa polêmica ou controvérsia mais profunda sobre a verdadeira historicidade do fundador do cristianismo - muito embora boa parte dos contra-argumentos agora levantados não busque o diálogo entre verdades, mas a reafirmação da verdade literal das escrituras religiosas. Na onda dos Guias Politicamente Incorretos da editora Leya, que decantam uma espiritualidade neoconservadora em terras tupiniquins, a editora Agir lançou "Uma História Politicamente Incorreta da Bíblia", de Robert J. Hutchinson, jornalista norte-americano especializado em religião. A obra corre solta pelas mãos dos livreiros e nas banquinhas das portas de igrejas que buscam segurança e prosperidade, "ecumenicamente". Traduzido do "The Politically Incorrect Guide to the Bible" (EUA, 2007), o livro tem uma capa Kitsch que não deixa dúvidas quanto ao seu objetivo: levar o grande público ao combate da hermenêutica moderna (da “esquerda liberal”), para quem, segundo pensa o autor, Jesus, Moisés e Davi dividem espaço com Hitler, Stálin e Marx. O livro contraria as expectativas críticas e libertárias dos estudos contemporâneos da religião e defende que a Bíblia é a fonte das ideias ocidentais de justiça, ciência e democracia. Segundo Hutchinson, os estudiosos modernos destroem e debocham das passagens presentes nos textos sagrados. Ele apresenta, então, pistas “arqueológicas” para argumentar que a Bíblia é mais do que um código moral ou relato mitológico. O último capítulo busca principalmente destruir as imagens modernas de um Jesus Superstar ou Revolucionário, e sobretudo ridicularizar a busca pelo "Jesus Histórico" - que estaria na base das provocações "científicas" daquela "mídia cínica" contra a religião judaico-cristã.

Essa pesquisa do "Jesus Histórico" começou com Reimarus e percorreu os trabalhos de David Strauss, de Ernest Renan e de Albert Schweitzer, chegando aos luteranos Martin Dibelius e Rudolf Bultman. Em um segundo momento, com participação também de teólogos católicos, ressurgiu nos estudos de Joachim Jeremias, Hyam Maccody, Jacob Neusner e Geza Vernes, E. P. Sanders, Raymond Brown e John P. Meier, N. T. Wright e Ben Witherington III. Em fase mais recente, através dos estudos do grupo "Jesus Seminar", vem sendo aprofundada por Robert Funk, John Dominic Crossan, John Shelby Strong e Karen Armostrong. Todos eles parecem "politicamente corretos" em sua crítica histórica e reinterpretação teológica de Jesus, mas estão redondamente enganados pelo relativismo sociológico ("socialista") e pervertidos pelo espírito modernista, diz o jornalista gringo.

Conclusões parecidas são apresentadas no último livro do Papa, "A infância de Jesus", que encerra uma trilogia toda ela traduzida pela editora Planeta Brasil. A obra recentemente lançada, com capa austera e profunda erudição, é dividida em quatro capítulos: o primeiro trata da genealogia de Jesus. O segundo fala do anúncio do nascimento de João Batista e de Jesus. O terceiro aborda o nascimento em Belém (e não em Nazaré) e faz referência ao contexto histórico do nascimento de Jesus. O quarto capítulo fala sobre o papel dos Reis Magos, que representam, segundo o Papa, a humanidade "quando faz o caminho para Cristo". No epílogo, com base no Evangelho de Lucas, comenta-se o último episódio da infância de Jesus, quando foi ao Templo debater com os doutores da Lei. O Papa Bento XVI afirma que o "nascimento virginal" de Cristo é verdade histórica, e fundamental para a fé cristã. Seu objetivo é combater a exegese contemporânea, que se baseia no método histórico-crítico e, privilegiando a filologia e a historiografia, coloca em evidência o problema da historicidade das muitas narrações evangélicas, buscando então o seu sentido simbólico. Muitos estudiosos consideram os evangelhos da infância um acréscimo com relação ao núcleo central do Novo Testamento, que teria significados acima de tudo simbólicos. Mas o Papa-Ratzinger escreveu que "para a fé bíblica é fundamental a referência a eventos históricos reais. Ela não conta a história como um conjunto de símbolos", mas "se fundamenta na história que aconteceu sobre a superfície desta terra". Ele tenta, então, harmonizar os dados e asseverar a sua factibilidade.

Porém a tentativa de Bento XVI não está fadada ao sucesso "científico", porque as contradições dos relatos não podem ser remediadas: é a opinião do teólogo italiano Vito Mancuso, em artigo publicado no jornal La Repubblica (veja tradução aqui). Uma posição de reservas é também a do biblista espanhol Carlos Escudero Freire, em sua "Recensión bibliográfica sobre la obra de Benedicto XVI" (veja aqui). Ele defende que "No relato da cena do nascimento de Jesus, Bento XVI não tira as conclusões que decorrem dos textos: não vê, ou não quer ver, que os títulos transcendentes de Jesus produzem surpresa e perplexidade, ao confrontá-los com os pastores e o sinal de pobreza que o anjo lhes deu, porque os pastores representam os marginalizados e excluídos de todos os tempos. A conclusão é clara: o nascimento de Jesus é uma boa notícia e alegria, em primeiro lugar, para todos os excluídos da sociedade, porque Deus escolheu e revelou assim. (...) Quanto à virgindade de Maria, nós entendemos a coerência de Bento XVI, mas os argumentos convergentes que apresentamos para a paternidade de José têm uma força inegável. O que não podemos aceitar é a afirmação de que a virgindade de Maria é fundamento da nossa fé, equiparando-a explicitamente ao tema da ressurreição de Jesus".

O teólogo brasileiro Leonardo Boff avaliou o escrito do Papa (veja aqui) e diz que ele “Apresentou a versão clássica e tradicional que vê naqueles relatos idílicos uma narrativa histórica. O livro deixou os teólogos perplexos, pois a exegese bíblica sobre estes textos, já há pelos menos 50 anos, mostrou que não se trata propriamente de um relato histórico, mas de alta e refinada teologia, elaborada pelos evangelistas Mateus e Lucas (Marcos e João nada falam da infância de Jesus) para provar que Jesus era de fato o Messias, o filho de Davi e o Filho de Deus. (...) Face aos relatos tão comovedores do Natal estamos diante de um grandioso mito, entendido positivamente como os antropólogos o fazem: o mito como a transmissão de uma verdade tão profunda que somente a linguagem mítica, figurada e simbólica é adequada para expressá-la. É exatamente o que o mito pretende. O mito é verdadeiro quando o sentido que quer transmitir é verdadeiro e ilumina toda a comunidade. Assim o Natal é um mito cristão cheio de verdade, da proximidade de Deus e da familiaridade”.

Em meio aos debates que saltam dos textos e atravessam as praças e rádios da cidade, no último domingo, 23 de dezembro, o Programa Canal Livre, da Rede de TV Bandeirantes (veja abaixo) debateu a vida e o tempo de Jesus Cristo. A convidada foi Maria Clara Bingemer, teóloga e professora do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC do Rio de Janeiro. A conversa, com participação de Fabio Pannunzio e Fernando Mitre, comentou o novo livro do Papa mas foi para além dele, incluindo outras questões acerca da figura de Jesus e do seu movimento, como a diversidade e historicidade das fontes, o lugar dos apócrifos, a dimensão política da mensagem cristã e o lugar das mulheres nessa tradição religiosa. Vale a pena assistir e escutar, quem sabe, ao final, uma pergunta que continua a ser sussurrada em nossos ouvidos: "Quem dizem os homens que eu sou?" (Lc 9,18).

Gilbraz.



Mais no blog:

8 comentários:

  1. essa é uma faceta "nova" da questão problemática do relacionamento entre ciência (história) e fé (mito)... radicalizar numa ou noutra direção não ajuda numa visão integral da vida... mas os talibãs do cristianismo estão às portas! não me sinto, com isso, mais salva da "barbárie" pós-moderna dos funks e bregas desse mundo... ah, Cristo! "só botando Jesus na causa"! (Syl)

    ResponderExcluir
  2. Creio que, nesse mundo sem regras nem verdades, a palavra de autoridade de um Papa sábio como Bento XVI fará grande sucesso, sim! E todos precisamos da verdade sobre Jesus, da verdade que é Jesus!
    Manoel.

    ResponderExcluir
  3. muito legal a resenha, porque faz a gente pensar, deixa aberto pra refletir sobre quem foi esse homem, e qual é mesmo o sentido da sua divindade. gostei pra valer (Dani)

    ResponderExcluir
  4. Assisti ao programa no dia em que foi exibido. Confesso que achei a Maria clara muito mais "católica" do que o próprio Papa Bento XVI. Defender com tamanha ênfase que Maria continuou virgem após o nascimento de Jesus foi de dar pena.O que valeu mesmo foram os ótimos comentários do Fernando Mitre.

    ResponderExcluir
  5. Gostei do artigo pois, de forma objetiva, demonstra o interesse
    mundial pelo tema. Este ano, em nosso grupo de estudos, fizemos a
    leitura atenta de um capítulo do livro de Giupseppe Barbaglio, sobre
    relatos de milagres, no livro publicado pelas Paulinas, em 2011, que tem
    como título Jesus, hebreu da Galileia. Os alunos gostaram. Há também
    vivo interesse dos alunos do Mestrado pelo tema, nas aulas que estou
    ministrando. De fato, esse é um filão interessante para a pesquisa.
    O blog está excelente. Parabéns!
    Feliz 2013.
    João Luiz.

    ResponderExcluir
  6. o que é a verdade? o que é a história?
    claro que todas as religiões são belas narrativas mitológicas, que ajudam a gente a criar sentido verdadeiro, a fazer história com as nossas vidas, nessa ilusão malvada e sem rumo que é a vida...
    mas, se os modernos são cegos pro "esprit de finesse" da linguagem simbólica, esses religiosos pré-modernos o são pro "esprit de géometrie" da descrição digital, como diria Pacal.
    é hora dos espiritualistas, dos supramodernos, capazes de combinar (e superar) ciência e tradição... né não?!
    oxe!!!

    ResponderExcluir
  7. ... É lamentável que homens, que se dizem cultos e lideranças no mundo, ainda queiram que retornemos aos primórdios de nossa primitividade e irracionalidade, simplesmente para reforçar tradições que, bem compreendidas, já deveriam estar sob a poeira do tempo e da razão. As religiões institucionais e seus mantenedores (sacerdotes e seguidores) vivem num mundo mitológico em decadência, em ruínas, mas não o sabem, porque a “ilusão” do mito os tomou sobremodo, subjugou suas mentes, atirou sua razão a um calabouço escuro e fétido, igual ao de Papillon, no qual comer baratas é quase um banquete. Nós, sr. Ratzinger, nós, homens do conhecimento, do pleno meio-dia, do século XXI, nos recusamos a retornar a essa escuridão, a esse calabouço, a esse labirinto mitorreligioso, a essa caverna platônica. Nós, sr. Ratzinger, já crescemos, já nos libertamos – nós já vimos o Sol.

    http://lounge.obviousmag.org/alfarrabios/2012/11/o-homem-mitologico-versus-o-sol-da-razao---a-religiao-em-descompasso-com-o-seculo-xxi.html

    ResponderExcluir
  8. Somente na mente de crentes e em benefício da própria fé, a história da origem do cristianismo pode ser acolhida como se apresenta. É contada no Novo Testamento, e apenas nele existe. Portanto, nada há de científico no seu acatamento. Trata-se de um ato de imposição política.
    Toda essa conversa de “Cornélio Tácito, respeitado historiador romano do primeiro século, escreveu: “O nome [cristão] deriva-se de Cristo, a quem o procurador Pôncio Pilatos executou no reinado de Tibério.” Suetônio e Plínio, o Jovem, outros escritores romanos daquela época, também se referiram a Cristo. Além disso, Flávio Josefo, historiador judeu do primeiro século, escreveu sobre Tiago, a quem identificou como “o irmão de Jesus, que era chamado Cristo”. Não vale meio centavo furado. Por quê?
    Porque, inicialmente, nenhum dos primeiros apologistas cristãos se referiu a nenhuma dessas “provas” fabricadas posteriormente ou a partir do século IV. Por quê?
    Porque o cristianismo surgiu no século II e a “história” contada e situada na Palestina no século I é pura invenção. Oh! Não pode ser! Pode sim. Lembra de que nos primórdios havia uma contenda entre os cristãos? Pois então, Uns queriam um Cristo espiritual e outros um Cristo de carne e osso, o “histórico”. Os primeiros aspiravam pelo aprimoramento espiritual do indivíduo na luta contra o judaísmo. Os segundos estavam determinados a vencer e subjugar o judaísmo. Para tanto necessitavam de uma ligação mais convincente com a cultura judaica. Mais por quê?
    Porque nos primeiros séculos o proselitismo judaico avançava perigosamente sobre a cultura greco-romana e o número de convertidos plenos crescia de forma preocupante. A pressão de certa camada das classes altas pressionava o governo a tomar uma atitude e assim foi feito. O imperador Adriano (117-138) proibiu a circuncisão em todo o Império, um dos principais motivos da guerra contra os judeus, de 132.
    A conversão ao judaísmo seguia passos obrigatórios que levavam tempo. No final do processo o prosélito era circuncidado e somente a partir daí era aceito como membro da nação de Israel. Isto significa que a aceitação dos pagãos, em especial gregos e romanos, pelo judaísmo era ampla e perigosa para a cultura dominante na época. Todavia, o sucessor de Adriano, Antonino Pio (138-161), relaxou um pouco as medidas antijudaicas, mas manteve a proibição da circuncisão sob pena de morte somente para não judeus. Daí uma legião de prosélitos incircuncisos, que jamais seria aceita na nação de Israel, recebe atenção de uma nova religião alegadamente surgida de uma seita judaica que havia abolido a circuncisão e a rigidez mosaica abrindo concorrência com o judaísmo real.
    Detalhe: quem eram esses divulgadores ou propagandistas dessa nova religião?
    Judeus reformistas insatisfeitos com o judaísmo tradicional? Não. Eram gregos na maioria e uns poucos latinos, os mais incomodados com o proselitismo judaico, a liderar tal iniciativa.
    É só pensar um pouquinho: pelo teor das suas mensagens, Jesus, precisava ser judeu? Não. Por que os fariseus (defensores do judaísmo ortodoxo) foram tão esculachados pelos evangelhos e os judeus em geral pela história cristã? Por que a crucificação do personagem Jesus foi creditada aos malévolos judeus? Essa é uma história de ódio. Engana-se quem quiser. O Jesus histórico é uma invenção da ala vitoriosa do cristianismo primitivo na ânsia de submeter o judaísmo e a nossa cultura não quer que isto apareça se não ela se ferra. Pronto.

    ResponderExcluir

Obrigado pela sua participação!