25 de jul. de 2012

DANÇA E RELIGIÃO




“Mostrem-me como dança um povo e eu lhes direi se sua civilização está doente ou tem saúde” (Confúcio).

Ouvi dizer que hoje é dia das mulheres negras: muito apropriado pro que vou falar! A gente planta sementes e não sabe direito no que elas vão dar... Dia desses, no curso de teologia da Unicap, tivemos o prazer de conviver com o sorriso contagiante de uma menina linda e muito quietinha lá da Mustardinha: Angélica Souza. Pois bem, neste mês Angélica apresentou, toda amostrada, como trabalho de conclusão agora do seu curso de jornalismo na Faculdade Joaquim Nabuco, o vídeo-documentário "Dança, um culto ao Sagrado", onde resgata, de maneira testemunhal e compartilhada, o trabalho de inculturação da liturgia cristã realizado pelo Pe. Jacques Trudel e companheir@s lá na paróquia dela, na periferia pobre do Recife - todavia uma região rica em religiosidade e cultura afro-pernambucana, com importantes terreiros do nosso candomblé/xangô. O filme, mostrando e problematizando a busca da beleza como redenção de uma comunidade empobrecida, o toque do/no sagrado como re-animação dos corpos alquebrados e reprimidos daquela gente majoritariamente "negra", poderia invocar, como síntese, a famosa frase de Nietzsche: "Eu somente acreditaria em um Deus que soubesse dançar"! 

Até fui convidado pra compor a banca de avaliação do trabalho de Angélica. Não pude estar por causa do Congresso da Soter, mas foi até bom: a nota 10 que ela ganhou não poderá ser questionada por influência de um fã seu! O vídeo de Angélica revela como o pessoal do bairro, louvando o sagrado cristão com os traços da cultura "afrolatíndia", aprendendo a respeitar e assumir os valores dançantes que correm no "sangue", conseguiu levantar a sua auto-estima de gente e se descobrir amado mesmo por Deus, com seus corpos de negros e sua ginga afro-descendente. O documentário coloca, assim, o desafio da inculturação: uma tradição religiosa consegue se deixar encarnar por um grupo humano quando assume o seu jeito de viver e celebrar, recriando a sua identidade (litúrgica, mas também catequética e ministerial) em diálogo com as outras tradições do grupo, num processo que os estudiosos laicos chamam de sincretismo - e explica como todas as culturas do mundo se desdobram. O cristianismo, que nos chegou tão branco e helenizado (a despeito de um Jesus bailando pelas suas festas judaicas!), pode mesmo se refazer em torno de atabaques e danças "negras"? Quais seriam as semelhanças e diferenças entre uma dança na igreja e outra do terreiro?! São questões que se vislumbram no roteiro.

Além desses méritos antropológico e teológico, o trabalho ainda tem um outro, histórico: lembra que os católicos do Recife precisam recuperar e cuidar (pois é isso, afinal, que pode converter de verdade alguém à fé) a memória de muitos santos missionários que, malgrado seus limites ideológicos e pessoais, procurando seguir o Movimento do Homão da Galileia, aqui fizeram e fazem fermentar o Governo de Deus, como Maurício Parran na pastoral com as putas e domésticas (ou pastoral de promoção da mulher, pra sermos elegantes), Jaime Kometscher na luta com a comunidade de Brasília Teimosa, Lourenço Rosebaugh com os moradores da rua (por causa de quem padeceu da mesma repressão que vitimou o Padre Henrique), René Guerre e os padres operários franceses na espiritualidade popular, Tiago Thorlby no MST, João Geisen dirigindo o seu táxi e animando o Encontro de Irmãos... (Isso "sem contar as crianças e as mulheres" mais da terra - de quem os anais oficiais não guardam nem os sobrenomes - como Lizete, Biluca, Ivone, Ana, Helena, Maria...). Ah, e entre muitos outros, Jacques Trudel. 
...
"Padre Jaime", como é conhecido e querido na Mustardinha, é jesuíta canadense e doutor em teologia litúrgica pelo Instituto Santo Anselmo (Roma), com a tese "Eucharistie et Vie Sociale". Talvez por esses estudos tenha descoberto que o lugar mais adequado pra um religioso fazer política - afinal, "tudo é político, mesmo que o político não seja tudo", como dizia Mounier - é no trato com o simbólico, ajudando a emancipar o núcleo ético-mítico das comunidades, soltando as "asas do desejo" e libertando poeticamente as pessoas - pra engajamentos mais amplos na "pólis". Com efeito, a desalienação e inculturação dos símbolos religiosos é a marca, militante, da pastoral de Trudel (se uma menina negada e denegada vê as cores e ritmos de sua gente nas imagens e rituais sagrados da comunidade, sai da igreja empoderada pra ser mais altiva e exercitar santidade com toda a largueza do seu nariz - e não pra depender de santas de nariz empinado). Professor em diversas escolas da nossa região, Jaime foi chefe da Teologia e da Pastoral da Unicap, presidente da Associação dos Liturgistas do Brasil, porém tornou-se famoso como vigário da Mustardinha - onde desenvolveu trabalho pioneiro de dança litúrgica e encarnação da missa na cultura morena da gente. Trudel virou até Cidadão do Recife, mas foi afastado da paróquia.

Culturas e manifestações culturais diferentes são consideradas problemáticas quando vistas pela interpretação depauperada de uma tradição religiosa. E a dança, então, é de modo geral uma fronteira delicada para os cristãos. A dança, dizia Platão, "é um dom dos deuses. Ela deve ser consagrada aos deuses que a criaram". Mas os romanos andaram degradando as artes, a dança inclusive, em seu imperialismo ruinoso. O cristianismo, na sua condenação desse mundo que apodrecia, principalmente com os imperadores ditos cristãos do séc. IV, englobou as artes e danças. Santo Agostinho, já ele, condenava "esta loucura lasciva chamada dança, negócio do diabo". Isso juntou-se a um dualismo grego que inclusive tinha levado São Paulo a opor o espírito aos sentidos e a desprezar o corpo e as suas expressões. A dança, por essas razões históricas e antropológicas, perdeu sua força no Ocidente cristão e, a partir do século XII, foi banida da liturgia.
 
Somente no século XX a dança foi se recuperando em nossa cultura (vejam essa história no belo livro Dançar a Vida, de Roger Garaudy, amigo de Dom Helder) e, finalmente, a reforma litúrgica católica, ensejada pelo Concílio Vaticano II (1964), permitiu a consideração dos valores humanos e a reintrodução da dança na liturgia - como incremento simbólico para melhor exprimir a proximidade amorosa e animadora do "Abbá" de Jesus. O problema é que um grupo conservador, que foi derrotado nesse Concílio, agora gostaria de opor novamente a Igreja e o mundo, o espírito e o corpo. Essa trama global criou dificuldades - e expôs a ousada e santa criatividade - da nossa Igreja local.

Então, o que o pessoal viveu na Mustardinha, com Trudel (que tem pé no chão da periferia e cabeça no vento da academia, estudou bem a liturgia de fonte e o rito zairense), foi um laboratório de experiência eclesial e espiritual muito mais ampla e complexa do que eles mesmo imaginam... Fizeram história, no sentido de tornar a Igreja mais capaz de tocar nas pessoas, conforme a sua sensibilidade cultural, e fazer com que elas se sintam tocadas e amadas por Deus em seus corpos e emoções. Não percam, pois, essa experiência: escrevam, filmem, partilhem. Sigam o exemplo dessa teóloga em processo, que testemunhou sua própria busca espiritual com destemor, em primeira pessoa e emprestando a voz a outros protagonistas, em um texto audiovisual que prenuncia logo outros - sobre como a dança vira religião, o profano ganha a qualidade de sagrado!

Virá o tempo em que muita gente vai querer conhecer o trabalho de vocês e respeitar quem é capaz de dizer, como Isadora Duncan, "Agora sou leve, agora eu voo... agora um deus dança em mim". Tenho muito apreço pelo caso da Mustardinha, em cujo movimento de evangelização aprendi muitas coisas - sobretudo que um que dança com outro soma sempre mais do que dois, pois criam um ponto de equilíbrio, "entre e além", que lhes permite apoio pra ultrapassar os limites dos seus corpos e se entrecruzar em coreografias e cirandas que nos abrem para outro espaço, de um sagrado encarnado (literalmente!), em que somos sempre mais do que aparentamos. Parabéns a Angélica e que ela mantenha, agora também como jornalista "nota 10", a dignidade e leveza que toda dançarina sabe ter. 

12 comentários:

  1. Feliz Demais.
    Obrigada pelas palavras, meu eterno professor!
    Forte abraço.

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  2. Amei o video,muito interessante !

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  3. Dança, como expressão ao sagrado, em rito (muito humano) tem sentido de relação, proximidade, elevação... é manifestação, revela o lado terapeutico e libertador da religião. O trabalho de Angélica é interessante porque mostra a diferença que tem feito em sua vida e na vida daquele povo, na Mustardinha. A comunicóloga está efetivamente inserida no contexto, no processo de transformação do objeto pesquisado. A câmera (lado técnico) respira com o olhar do observador, na dança da libertação, com o sagrado. As palavras doces, entusiastas e de deslumbramento do Prof. Gilbraz legitimam o processo da reflexão da teoria legitimamente aplicada à prática. Parabéns! Sinto-me melhor quando leio e vejo algo significante assim. Essa produção de sentido refaz "outros".

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  4. Preciso aprender a dançar e urgente!

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  5. Precisa não, moço: não pra prestar culto a Nosso Senhor. Onde já se viu: quer dançar vai no clube. Quer ver o folclore dos negros, é uma coisa. Religião é outra coisa, muito séria, conforme está nas Escrituras. Igreja é pra rezar!

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    1. Ao colega anônimo, sério mesmo é o que? Deus me livre desse deus e dessa religião séria sua. Entretanto, "folclore dos negros", cheira mal, puro preconceito. Mas tem outro problema aqui, todos expressam sua opinião sob as bençãos do Prof. Gilbraz, democraticamente, controversa ou não, identificando-se. Você não assumiu seu modo de expressar. Anônimo. Aqui não há inquisição por pensar diferente. Coragem!

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    2. Há, há! Vou entrar na conversa com uma lição que aprendi do próprio Pe. Jaime. Uma vez na Mustardinha a gente se desentendeu acerca das consequências políticas da evangelização (eram tempos quentes de fins da ditadura!). Eu era animador do Encontro de Irmãos e ele o vigário da paróquia... Então ele me chamou pra um jantar e, numa certa altura, mostrou uma caneca sobre a mesa e perguntou: "De que lado está a asa da caneca?". Eu disse, "Da esquerda". Ele, que tava do outro lado da mesa, disse "Pra mim, é do lado direito. Mas a caneca é a mesma pra nós dois!"... Então, eu aprendi que conhecimento se processa na conversa, na controvérsia. Se a gente está de acordo com esse pacto epistemológico, aí pode ir longe...

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    3. Anônimo, você primeiro aprenda a ler a Bíblia e interpretá-la de um modo mais claro e sensato... Pois, religião não é quartel nem tão pouco coisa séria, mas sim flexível, onde temos direitos de ir e vir e não viver obrigado e aprisionado como muitos religiosos nato fazem. A religião é o meio de resgatar nossos irmãos em Cristo perdidos no mundo, evangelizando-os e mostrando o caminho da salvação de um modo mais a vontade, e a dança é cultura, independente do seu segmento e de sua religião, você não é abrigado gostar e sim a aceitar... Quem dança é mais feliz!!! Independente se vai louvar ao Senhor ou não; desde quando haja ética e respeito para com o próximo. Seja um cristão e não uma pessoa sem culturas e sem conhecimentos.

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  6. Luca Pacheco27 julho, 2012

    Assistindo ao documentário fui me lembrando de diversas experiências que Deus me deu a alegria de vivenciar no campo da dança litúrgica: As apresentações das oficinas de dança, orientadas pela Ângela, minha esposa, na Catequese Narrativa; as missas festivas de nossa paróquia de origem; as missas indígenas do Alto Rio Negro; as missas de Angola, na África... Todas experiências profundas de uma espiritualidade encarnada que se expressam através da corporeidade. Pessoas que têm a liberdade de expressar a experiência do Sagrado do seu jeito, com sua linguagem. Nestas partilhas e celebrações experimentei intensamente a presença do Deus que se fez homem, que se fez CORPO, e hoje se faz presente na corporeidade do outro para nos indicar como ser mais divinos. Parabéns ao Pe. Jaime e comunidade da Mustardinha e parabéns para a Angélica que reverberou essa bonita experiência no meio acadêmico e na web.

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  7. Parabéns pelo seu trabalho. Eu como profissional da dança de salão, me enriqueceu muito para com meu trabalho com a dança. E lembrou parte da minha infância vivida na comunidade da Mustardinha como católico da Igreja citada na matéria; onde me catequisei. Então, eu adorava quando ia as missas e via o grupo da liturgia da dança entrando, minha vontade era de está ali; ainda em sua matéria revi amigos e o Padre Jaime que me catequisou. Muita, mais muita emoção... Sua matéria vai me ajudar muito em meu PROJETO SOCIAL "DANÇA PARA TODOS" na comunidade de San Martin. Parabéns, tiro meu chapéu para você... Espero um dia que faça uma matéria com meu projeto, será uma honra. Obrigado.

    França.
    81-87017730.

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  8. A notícia foi parar no Portal NE10, pelo dia da Consciência Negra:
    http://ne10.uol.com.br/canal/cotidiano/grande-recife/noticia/2012/11/20/danca-sagrada-um-resgate-a-cultura-negra-381976.php

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  9. ‎"Em algumas tribos xamânicas, se você chegar ao curandeiro se queixando de desânimo, de depressão, ele irá te fazer 6 perguntas: - quando você parou de dançar? - quando você parou de cantar? - quando você parou de acreditar? - quando você parou de se encantar pelas estórias? - quando você parou para silenciar? - quando você parou de amar?"
    Janine H.

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